A Pessoa Total, Tricotomia ou Dicotomia? - por Anthony Hoekema


Um dos aspectos mais importantes da visão cristã do homem é a de que devemos vê-lo em sua unidade, como uma pessoa total. Os seres humanos têm sido imaginados como consistindo de partes separadas e, algumas vezes, de partes distintas, que são, dessa forma, abstraídas da totalidade. Assim, nos círculos cristãos, tem sido crido do homem como consistindo tanto de “corpo” e “alma” como de “corpo”, “alma” e “espírito”. Tanto os cientistas seculares como os teólogos cristãos, contudo, estão reconhecendo gradativamente que tal entendimento dos seres humanos está errado, e que o homem deve ser visto como uma unidade. Visto que nossa preocupação é com a doutrina cristã do homem, devemos dar uma nova olhada para o ensino bíblico a respeito dos seres humanos, para ver se de fato isto é assim.

O que devemos observar primeiro de tudo é que a Bíblia não descreve o homem cientificamente; na verdade,

o julgamento (dos teólogos) é que a Bíblia não nos dá nenhum ensino científico a respeito do homem, nenhuma “antropologia” que deveria ou poderia estar em competição com uma investigação científica do homem nos vários aspectos de sua existência ou com a antropologia filosófica. [1]
Além disso, a Bíblia não usa uma linguagem científica exata. Ela usa termos como alma, espírito e coração mais ou menos indistintamente. Isto é por causa

das partes do corpo que são tidas, não primariamente do ponto de vista de suas diferenças ou de suas inter-relações com outras partes, mas como significando ou enfatizando os diferentes aspectos do homem total em relação a Deus. Do ponto de vista da psicologia analítica e da fisiologia, o uso do Antigo Testamento é caótico: ele é o pesadelo do anatomista quando qualquer parte pode ser entendida como sendo a totalidade. [2]

Portanto, não é impossível construir uma psicologia bíblica exata e científica. Alguns têm tentado fazer isso. Um dos mais notáveis nessa tarefa é Franz Delitzsch, cujo livro System of Biblical Psychology foi originalmente publicado em 1855. Mas mesmo Delitzsch teve que admitir que “a Escritura não é um livro escolástico [or didática] de ciência” e que “é verdade que em assuntos psicológicos, assim tão pouco quanto em assuntos éticos ou dogmáticos, a Escritura abrange (ou contém) qualquer sistema proposto na linguagem das escolas”. [3]

Em 1920, o teólogo holandês Herman Bavinck escreveu um livro entitulado Biblical and Religious Psychology (Psicologia Bíblica e Religiosa). Semelhantemente a Delitzsch, ele admitiu que

[a Bíblia] não nos fornece uma psicologia popular ou científica mais do que ela nos proporciona uma narrativa [schets] da história, geografia, astronomia ou agricultura...Mesmo se alguém desejasse tentar, seria impossível retirar da Bíblia uma psicologia que pudesse satisfazer as nossas necessidades. Porque não somente seria impossível ter uma narrativa completa de todos os vários dados, mas também as palavras que a Bíblia usa, tais como espírito, alma, coração e mente, foram emprestadas da linguagem popular dos judeus daqueles dias, ordinariamente possuindo um conteúdo diferente daquele que associamos com esses termos, e nem sempre usados no mesmo sentido. As Escrituras nunca usam conceitos abstratos e filosóficos, mas sempre falam a rica linguagem do dia a dia. [4]

Embora não derivemos uma antropologia ou psicologia científica exata da Bíblia, podemos aprender da Escritura muitas verdades importantes a respeito do homem. Na verdade, isso é o que tentamos fazer nos capítulos anteriores deste livro. Deveríamos nos lembrar novamente que a coisa mais importante que a Bíblia diz a respeito do homem é que ele está inescapavelmente relacionado a Deus. Berkouwer coloca este assunto da seguinte maneira: “Podemos dizer sem medo de contradição que a coisa mais notável no retrato bíblico do homem repousa nisto: que nunca chama a atenção para o homem em si mesmo, mas exige a nossa atenção mais plena para o homem em sua relação com Deus.” [5] Podemos acrescentar que a Bíblia também dirige nossa atenção para o homem à medida em que ele se relaciona com os outros seres humanos e com a criação. [6] Em outras palavras, as Escrituras não estão primariamente interessadas nas “partes” constituintes do homem ou na sua estrutura psicológica, mas nos relacionamentos que ele mantém.


Tricotomia ou Dicotomia?
Vez por outra, entretanto, tem sido sugerido que o homem deveria ser entendido como consistindo de certas “partes” especificamente distintas. Um desses entendimentos é usualmente conhecido como tricotomia — a idéia que, segundo a Bíblia, o homem consiste de corpo, alma e espírito. Um dos proponentes mais antigos da tricotomia, como vimos, é Irineu, que ensinava que enquanto os incrédulos possuiam somente almas e corpos, os crentes adquiriam espíritos adicionais, que eram criados pelo Espírito Santo. [7] Um outro teólogo que usualmente está associado com a tricotomia é Apolinário de Laodicéa, que viveu de 310 a aproximadamente 390 AD. A maioria dos intérpretes atribuem a ele a idéia de que o homem consiste de corpo, alma e espírito ou mente (pneuma ou nous), e que o Logos ou a natureza divina de Cristo tomou o lugar do espírito humano na natureza humana que Cristo assumiu. [8] Berkouwer, contudo, assinala que Apolinário desenvolveu primeiro a sua cristologia errônea em um contexto de dicotomia. [9] Mas J. N. D. Kelly diz que é uma questão de importância secundária se Apolinário era um dicotomista ou tricotomista. [10]

A tricotomia foi ensinada no século XIX por Franz Delitzsch, [11] J. B. Heard, [12] J. T. Beck, [13] e G. F. Oehler. [14] Mais recentemente tem sido defendido por escritores como Watchman Nee, [15] Charles R. Solomon (que afirma que através do seu corpo, o homem relaciona-se com o ambiente, através de sua alma com os outros, e do seu espírito com Deus), [16] e Bill Gothard. [17] É interessante observar que a tricotomia é também defendida na antiga e na nova Scofield Reference Bible. [18] A despeito deste apoio, devemos rejeitar a visão tricotomista da natureza humana.

Primeiro, ela deve ser rejeitada porque ela parece fazer violência à unidade do homem. A palavra em si mesma sugere que o homem pode ser separado em três “partes”: a palavra tricotomia é formada de duas palavras gregas, tricha, “tríplice” e temnein, “cortar. Alguns tricotomistas, incluindo Irineu, até sugeriram que certas pessoas tinham os seus espíritos cortados, enquanto que outras não.

Segundo, devemos rejeitá-la porque ela freqüentemente pressupõe uma antítese irreconciliável entre espírito e corpo. Realmente, a tricotomia originada na filosofia grega, particularmente na concepção de Platão, que possuia também um entendimento tríplice da natureza humana. Herman Bavinck levanta uma discussão útil deste assunto no seu livro Biblical Psychology. Ele assinala que em Platão e em outros filósofos gregos havia uma aguçada antítese entre as coisas visíveis e as invisíveis. O mundo como substância material não foi criado por Deus, diziam os gregos, mas sempre esteve contra ele. Um poder intermediário se fazia necessário para que pudesse haver ligação entre o mundo e Deus, e, assim, haver harmonia entre eles — este era o mundo da alma. A idéia do homem, encontrada no pensamento grego, pensa Bavinck, é semelhante: o homem é um ser racional que possui razão (nous), mas ele é também um ser material que tem um corpo. Entre esses dois deve haver uma terceira realidade que age como mediador: a alma, que é capaz de dirigir o corpo em nome da razão. [19]

A Bíblia, contudo, não ensina qualquer tipo de distinção aguda entre espírito (ou mente) e corpo. Segundo as Escrituras, a matéria não é má porque foi criada por Deus. A Bíblia nunca denigre o corpo humano como uma fonte necessária do mal, mas o descreve como um aspecto da boa criação de Deus, que deve ser usado no serviço de Deus. Para os gregos o corpo era considerado “uma sepultura para a alma” (soma sema) que o homem alegremente abandonava na morte, mas esta idéia é totalmente estranha às Escrituras.

Devemos rejeitar também a tricotomia porque ela faz uma aguda distinção entre o espírito e a alma que não encontra suporte algum nas Escrituras. Podemos ver isto mais claramente quando observamos que as palavras hebraica e grega traduzidas como alma e espírito são freqüentemente usadas indistintamente nas Escrituras.

1. O homem é descrito na Bíblia tanto como alguém que é corpo e alma como alguém que é corpo e espírito: “Não temais aqueles que matam o corpo mas não podem matar a alma” (Mt 10.28); “Também a mulher, tanto a viúva como a virgem, cuida das coisas do Senhor, de como agradar ao Senhor, assim no corpo como no espírito” (1 Co 7.34); “Como o corpo sem o espírito está morto, assim a fé sem as obras é morta” (Tg 2.25).

2. A dor é atribuída tanto à alma como ao espírito: “Levantou-se Ana e, com amargura de espírito, orou ao Senhor, e chorou abundantemente” (1 Sm 1.10); “Porque o Senhor te chamou como a mulher desamparada e de espírito abatido; como a mulher da mocidade, que fora repudiada, diz o teu Deus” (Is 54.6); “Agora está angustiada a minha alma” (Jo 12.27); “Ditas estas cousas, angustiou-se Jesus em espírito” (Jo 13.21); “Enquanto Paulo os esperava em Atenas, o seu espírito se revoltava, em face da idolatria dominante na cidade” (At 17.16); “(Porque este justo [Ló], pelo que via e ouvia quando habitava entre eles, atormentava a sua alma justa, cada dia, por causa das obras iníquas daqueles)” (1 Pe 2.8).

3. O louvor e o amor a Deus são atribuídos tanto a alma como ao espírito: “A minha alma engrandece ao Senhor e o meu espírito se alegra em Deus meu Salvador” (lc 1.46-47); “Amarás, pois, o Senhor teu Deus de todo o teu coração e de toda a tua alma, de todo o teu entendimento e de toda a tua força” (Mc 12.30).

4. A salvação é associada tanto à alma como ao espírito: “Acolhei com mansidão a palavra implantada em vós, a qual é poderosa para salvar as vossas almas” (Tg 1.21); “...entregue a Satanás, para a destruição da carne, a fim de que o espírito seja salvo, no dia do Senhor” (1 Co 5.5).

5. O morrer é descritivo tanto como uma partida da alma como do espírito: “Ao sair-lhe a alma (porque morreu), deu-lhe o nome de Benoni” (Gn 35.18); “E estendendo-se três vezes sobre o menino, clamou ao Senhor, e disse: Ó Senhor meu Deus, que faças a alma deste menino tornar a entrar nele” (1 Rs 17.21); “Não temais os que matam o corpo e não podem matar alma; temei antes aquele que pode fazer perecer no inferno tanto a alma como o corpo” (Mt 10.28); “Nas tuas mãos entrego o meu espírito” (Sl 31.5); “E Jesus clamando outra vez com grande voz, entregou o espírito” (Mt 27.50); “Voltou-lhe o espírito, ela imediatamente se levantou”(Lc 8.55); “Então Jesus clamou em alta voz: Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito!” (Lc 23.46); “E apedrejavam a Estevão que invocava e dizia: Senhor Jesus, recebe o meu espírito!” (At 7.59).

6. Aqueles que já haviam morrido eram algumas vezes chamados tanto de almas e outras vezes de espíritos: Mt 10.28, citado acima; “Quando ele abriu o quinto selo, vi debaixo do altar as almas daqueles que tinham sido mortos por causa da palavra de Deus e por causa do testemunho que sustentavam” (Ap 6.9); “e a Deus, o juíz de todos, e aos espíritos dos justos aperfeiçoados “ (Hb 12.23); “Pois também Cristo morreu...para conduzir-vos a Deus; morto, sim, na carne, mas vivificado em espírito, no qual também foi e pregou aos espíritos em prisão, os quais noutro tempo foram desobedientes quando a longanimidade de Deus aguardava nos dias de Noé” (1 Pe 3.18-20).

Os tricotomistas freqüentemente apelam para duas passagens do Novo Testamento: Hb 4.12 e 1 Ts 5.23, para dar suporte ao seu conceito, mas nenhuma dessas passagens prova o ponto deles.

Hebreus 4.12 diz o seguinte:

Porque a Palavra de Deus é viva e eficaz, e mais cortante do que qualquer espada de dois gumes, e penetra até o ponto de dividir alma e espírito, juntas e medulas, e apta para discernir os pensamentos e propósitos do coração.

Estas palavras descrevem o poder penetrante da palavra de Deus. O autor de Hebreus não pretende dizer que a palavra de Deus causa uma divisão entre uma “parte” da natureza humana chamada alma e outra “parte” chamada espírito, assim como não pretende dizer que a palavra causa uma divisão entre as juntas do corpo e a medula encontrada nos ossos. A linguagem é figurativa. A cláusula seguinte aponta para o intento do autor: ele deseja dizer que a palavra de Deus discerne “os pensamentos e atitudes (ou intenções) do coração”. A palavra de Deus (seja ela entendida como a Escritura ou como Jesus Cristo) penetra nos recônditos mais interiores de nosso ser, trazendo à luz os motivos secretos de nossas ações. Esta passagem, na verdade, está em paralelo com um texto de Paulo: “[o Senhor] não somente trará à plena luz as cousas ocultas das trevas, mas também manifestará os desígnios dos corações” (1 Co 4.5). Não há, portanto, nenhuma razão para se entender Hebreus 4.12 como ensinando uma distinção psicológica entre alma e espírito como sendo duas partes constituintes do homem.

A outra passagem é 1 Tessalonicenses 5.23, onde se lê:

O mesmo Deus da paz voz santifique em tudo; e o vosso espírito, alma e corpo, sejam conservados íntegros e irrepreensíveis na vinda de nossos Senhor Jesus Cristo.

Deveríamos observar primeiro que esta passagem não é uma afirmação doutrinária, mas uma oração. Paulo ora para que seus leitores tessalonicenses possam ser santificados e completamente preservados ou guardados por Deus até que Cristo volte novamente. A totalidade da santificação, pela qual Paulo ora, é expressa no texto por duas palavras gregas. A primeira, holoteleis, é derivada de holos, significando a totalidade, e telos, significando a finalidade ou o alvo; a palavra significa “a totalidade de modo que se alcance o alvo”. A Segunda palavra, holokleron, derivada de holos e kleros, porção ou parte, significa “completa em todas as suas partes”. É interessante observar que na segunda metade da passagem, ambos o adjetivos holokeron e o verbo teretheie (“possam ser guardados ou preservados”) estão no singular, indicando que a ênfase do texto está sobre a totalidade da pessoa. Quando Paulo ora pelos tessalonicenses para que o espírito, alma e corpo possam ser guardados, ele não está tentando separar o homem em três partes, mais do que Jesus pretendeu fazer em quatro partes quando disse: “Amarás o Senhor teu Deus de todo o teu coração, de toda a tua alma, de todo o teu entendimento e de toda a tua força (Lc 10.27). Esta passagem, portanto, também não proporciona qualquer base para a visão tricotômica da constituição do homem. [20]

A outra idéia usualmente sustentada a respeito da constituição do homem é a chamada dicotomia — a idéia de que o homem consiste de corpo e alma. Esta visão tem sido mais largamente sustentada do que a tricotomia. Nossa rejeição de tricotomia significa que devemos optar pela dicotomia? Um número de teólogos afirma esta crença. Louis Berkhof, por exemplo, crê que “a representação dominante da natureza do homem na Escritura é claramente dicotômica”. [21]

É minha convicção, contudo, que nós deveríamos rejeitar tanto a dicotomia como a tricotomia. Como cristãos deveríamos certamente repudiar a dicotomia no sentido em que os antigos gregos a ensinaram. Platão, por exemplo, formulou a idéia de que o corpo e a alma devem ser tidos como duas substâncias distintas: a alma pensante, que é divina, e o corpo. Visto que o corpo é composto de substância inferior chamada matéria, ele é de um valor inferior à da alma. Na morte simplesmente o corpo se desintegra, mas a alma racional (ou nous) retorna “aos ceús”, se o seu curso de ação foi justo e honrado, e continua a existir para sempre. A alma é considerada uma substância superior, inerentemente indestrutível, enquanto que o corpo é inferior à alma, mortal, e condenado à destruição total. Não há no pensamento grego, portanto, lugar algum para a ressurreição do corpo. [22]

Mas mesmo à parte do entendimento grego da dicotomia, que é claramente contrário à Escritura, devemos rejeitar o termo dicotomia como tal, visto que ele não é uma descrição exata da visão bíblica do homem. A palavra em si mesma é objetável. Ela vem de duas raízes gregas: diche, significando “dupla” ou “em duas”; e temnein, significando “cortar”. Ela, portanto, sugere que a pessoa humana pode ser cortada em duas “partes”. Mas o homem nesta presente vida não pode ser separado dessa maneira. Como veremos, a Bíblia descreve a pessoa humana como uma totalidade, um todo, um ser unitário.

O melhor modo de determinar a visão bíblica do homem como uma pessoa total é examinar os termos usados para descrever os vários aspectos do homem. Antes de fazer isso, contudo, duas observações devem ser feitas: (1) Como foi dito, a preocupação primária da Bíblia não é a constituição psicológica ou antropológica do homem mas a sua capacidade inescapável de relacionar-se com Deus; e (2) devemos sempre Ter em mente que J. A. T. Robinson diz a respeito do uso que o Antigo Testamento faz destes termos: “Qualquer parte pode ser tomada pelo todo”, [23] e o que G. E. Ladd afirma a respeito do uso que o Novo Testamento faz dessas palavras: “A recente erudição tem reconhecido que termos como corpo, alma e espírito não são diferentes, faculdades separadas do homem mas diferentes modos de ver a totalidade do homem.” [24]

Com isto em mente, nós trataremos primeiro das palavras do Antigo Testamento e, então com as encontradas no Novo Testamento.


As Palavras do Antigo Testamento
Começamos com a palavra hebraica nephesh, mais comumente traduzida como “alma”. O léxico Hebraico de Brown, Driver e Briggs [25] dá dez significados para essa palavra, da qual os mais importantes para o nosso propósito são: “o ser mais interior do homem”, “o ser vivo” (usado a respeito de homens e animais), [26] “o homem em si mesmo” (freqüentemente usado como um pronome pessoal: eu mesmo, ele mesmo, etc.; neste sentido pode significar o homem como um todo), “o lugar dos apetites”, “o assento das emoções”. A palavra pode, algumas vezes, se referir a uma pessoa falecida, com ou sem meth (“morta”). É algumas vezes dito que a nephesh morre.

Está claro, portanto, que a palavra nephesh pode significar a pessoa total. Edmond Jacob diz o seguinte: “Nephesh é o termo usual para a natureza total do homem, para o que ele é e não apenas pelo que tem... Por isso a melhor tradução em muitos casos é ‘pessoa’”. [27]

A palavra hebraica seguinte é ruach, usualmente traduzida como “espírito”. O significado da raíz desta palavra é “ar em movimento”; ela é freqüentemente usada para descrever o vento. Brown-Driver-Briggs listam nove significados, incluindo os seguintes: “espírito”, “animação”, “disposição”, “espírito de vida e ser que respira morando na carne de homens e animais” (somente um exemplo deste último: Ec 3.21), “assento das emoções”, “órgão de atos mentais”, “órgão da vontade”. Ruach, portanto, sobrepõe-se em significado a nephesh. W. D. Stacey diz:

Quando a referência é feita ao homem em sua relação com Deus, ruach é o termo mais provável para ser usado..., mas quando referência é feita ao homem em relação a outros homens, ou o homem vivendo a vida comum dos homens, então nephesh é mais provável, se um termo psíquico é exigido. Em ambos os casos a totalidade do homem está envolvida. [28]

Portanto, não deve ser pensado de ruach como um aspecto separado do homem, mas como a pessoa total vista de determinada perspectiva.

Olhamos a seguir para as palavras do Antigo Testamento usualmente traduzidas como “coração”: lebh e lebhabh. Brown-Driver-Briggs dá dez significados para estas duas palavras, incluindo os seguintes: “o homem mais interior ou alma”, “mente”, “resoluções da vontade”, “consciência”, “caráter moral”, “o homem em si mesmo”, “o lugar dos apetites”, “o assento das emoções”, “o assento da coragem”. F. H. Von Meyenfeldt, em seu estudo final da palavra, conclui que lebh ou lebhabh usualmente representa a pessoa total e tem uma significação predominantemente religiosa. [29]

A palavra coração não somente é usada no Antigo Testamento para descrever o assento do pensamento, do sentimento e da vontade; é também a sede do pecado (Gn 6.5; Sl 95.8, 10; Jr 17.9), a sede da renovação espiritual (Dt 30.6; Sl 51.10; Jr 31.33; Ez 36.26), e o lugar da fé (Sl 28.7; 112.7; Pv 3.5).

Mais do que qualquer outro termo do Antigo Testamento, a palavra coração significa o homem no mais profundo centro de sua existência, e como ele é no mais profundo do seu ser. Herman Dooyeweerd, o filósofo holandês, entendeu o coração na Escritura como sendo “a raiz religiosa da existência total do homem”. [30] A filosofia que ele desenvolveu enfatiza que o coração é o centro e a fonte de toda a atividade religiosa, filosófica e moral do homem. Ray Anderson chama o coração de “o centro do eu subjetivo”. Ele é “a unidade do corpo e da alma na verdadeira ordem deles — ele é a pessoa”. [31]

Todos esses três termos examinados do Antigo Testamento, portanto, descrevem o homem em sua unidade e totalidade, embora olhando-o de aspectos ligeiramente diferentes. H. Wheeler Robinson comenta: “Não é possível fazer uma diferenciação exata das províncias cobertas pelo ‘coração’, nephesh e ruach, pela simples razão de que tal diferenciação exata nunca foi feita.” [32]

A próxima palavra é basar, usualmente traduzida como “carne”. Brown-Driver-Briggs lista seis significados, incluindo os seguintes: “”carne” (para o corpo), “parentesco de sangue”, “homem contra Deus como fraco e errante”, “raça humana”. N. P. Bratsiotis diz que basar é mais freqüentemente usado no Antigo Testamento para “o aspecto externo e carnal da natureza humana”. [33] Ele continua a dizer que quando basar é distinto do aspecto externo do homem e nephesh é entendido como sendo o aspecto interno, mesmo assim nunca devemos pensar destas palavras como descrevendo um dualismo de alma e corpo no sentido platônico.

Ao contrário, basar e nephesh devem ser entendidos como aspectos diferentes da existência do homem como uma entidade dual. É precisamente esta totalidade antropológica enfática que é determinante para a natureza dual do ser humano. Ela exclui qualquer noção de uma dicotomia entre basar e nephesh...como irreconciliavelmente opostos uma a outra, e revela o relacionamento psico-somático mútuo entre elas. [34]

A palavra basar é freqüentemente usada para descrever o homem em sua fraqueza. H. W. Wolff observa que freqüentemente basar descreve a vida humana como débil e fraca, dando como exemplo deste uso Jeremias 17.5 – “Maldito o homem que confia no homem, faz da carne mortal o seu braço”. [35]

Basar pode algumas vezes denotar a pessoa total, não apenas o aspecto físico. [36] Mas ela pode também ser juntada com nephesh em maneiras que referem ao homem total. Clarence B. Bass, comentando as palavras do Antigo Testamento para “corpo”, afirma:

Corpo e alma são usados quase que indistintamente, sendo que a alma indica o homem como um ser vivo, e corpo (carne) denota-o como uma criatura corporalmente visível...Esta unidade de corpo e alma [tem] conduzido alguns escritores a concluir que o Antigo Testamento carece de uma idéia do corpo físico como uma entidade discreta...Mais propriamente, contudo, o Antigo Testamento vê o corpo e a alma como coordenadas que se interpenetram em funções para formar um todo simples. [37]

Basar, portanto, também é freqüentemente usado no Antigo Testamento para denotar a pessoa total, embora com ênfase no lado exterior.

Assim, o mundo do pensamento do Antigo Testamento exclui totalmente qualquer espécie de dicotomia ou dualismo que pinte o homem como feito de duas substâncias distintas. Como H. Wheeler Robinson diz, “a ênfase final deve cair sobre o fato de que os quatro termos [nephesh, ruach, lebh e basar]...simplesmente apresentam aspectos diferentes da unidade da personalidade.” [38]


As Palavras do Novo Testamento
A primeira palavra do Novo Testamento que examinaremos é psyche, a palavra grega equivalente a nephesh, usualmente traduzida como “alma”. O léxico do Novo Testamento Grego de Arndt-Gingrich lista um número de significados para esta palavra, alguns dos quais são: “princípio de vida”, “vida terreal”, “assento da vida mais interior do homem” (incluindo sentimentos e emoções), “a sede e o centro da vida que transcende o que é terreno”, “aquilo que possui vida: uma criatura viva” (plural, pessoas). [39]

Eduard Schweizer afirma que psyche é usado freqüentemente nos Evangelhos para descrever o homem total, [40] para representar a verdadeira vida em distinção da vida puramente física, [41] e para referir-se à existência dada por Deus que sobrevive à morte. [42] Schweizer diz que Paulo usa psyche quando se refere à vida natural e à vida verdadeira; ele freqüentemente usa a palavra para descrever a pessoa. [43] No Livro do Apocalipse psyche pode ser usada para denotar a vida após a morte (como em 6.9). [44] Está claro, portanto, que psyche, como nephesh, freqüentemente significa a pessoa total.

Agora nos voltamos para a palavra pneuma, o equivalente do Novo Testamento a ruach, que quando se refere ao homem é mais usualmente traduzida como “espírito”. O léxico de Arndt-Gingrich dá oito significados, incluindo os seguintes: “o espírito como parte da personalidade humana”, “o ego de uma pessoa”, “uma disposição ou estado de mente”. Schweizer diz que Paulo usa pneuma para as funções físicas do homem, que ele é freqüentemente um paralelo de psyche, e que pode denotar o homem como um todo, com ênfase mais forte sobre o seu psíquico do que sobre a sua natureza física. [45]

George Ladd, numa discussão da psicologia paulina, diz-nos que no pensamento de Paulo o homem serve a Deus com o espírito e experimenta a renovação no espírito. Paulo algumas vezes contrasta o pneuma com o corpo como a dimensão mais interior em contraste com lado exterior do homem (2 Co 7.1; Rm 8.10). Pneuma pode descrever a auto-consciência do homem( 1 Co 2.11). [46] W. D. Stacey argumenta que Paulo não vê o pneuma como algo que somente o regenerado tem: “Todos os homens têm pneuma desde o nascimento, mas o pneuma cristão, na comunhão com o Espírito de Deus, assume um novo caráter e uma nova dignidade” (Rm 8.10). [47]

É interessante observar que pneuma pode se referir à vida após a morte. Como já vimos, Hebreus 12.23 descreve santos mortos como “os espíritos dos justos aperfeiçoados”, e ambos, Cristo (Lc 23.46) e Estevão (At 7.59), como moribundos encomendando seus espíritos a Deus o Pai ou Deus o Filho. Cristo é também dito ter pregado aos “espíritos em prisão”, obviamente se referindo a pessoas falecidas (1 Pe 3.19).

Pneuma também é em grande parte sinônimo de psyche, as duas palavras freqüentemente usadas indistintamente no Novo Testamento. Ladd, contudo, sugere uma distinção entre elas: “O espírito é freqüentemente usado a respeito de Deus; a alma nunca é usada dessa forma. Isto sugere que pneuma representa o homem em seu lado voltado para Deus, enquanto que psyche representa o homem em seu lado humano.” [48] Em geral, eu concordo com isto, mas há duas exceções. Por exemplo, a psyche é descrita algumas vezes como louvando e magnificando o Senhor (Lc 1.46), e Tiago nos diz a respeito da palavra em nós implantada que é capaz de salvar as nossas almas (psychas, Tg 1.21). Pneuma, está claro, pode ser usado como designativo da pessoa total; como psyche, ele descreve um aspecto do homem em sua totalidade.

A próxima palavra que olharemos é kardia, a palavra do Novo Testamento equivalente a lebh e lebhabh, usualmente traduzida como “coração”. Arndt-Gingrich dá o seguinte sentido principal da palavra: “a sede da vida física, espiritual e mental”. Ele é também descrito como o centro e a fonte da totalidade da vida mais interior do homem, com seu pensamento, sentimento e vontade. O coração é também dito ser o lugar de morada do Espírito Santo.

Johannes Behm semelhantemente descreve o coração no Novo Testamento como o principal órgão da vida psíquica e espiritual, o lugar no ser humano no qual Deus testemunha de si mesmo. O coração é o centro da vida mais interior de uma pessoa: de seus sentimentos, entendimento, e vontade. O coração significa a totalidade do ser interior do homem, a parte mais profunda dele; ele é sinônimo de ego, a pessoa. Kardia é supremamente o centro no homem para o qual Deus se volta, no qual a vida religiosa está enraizada, e que determina a conduta moral. [49]

Anteriormente já observamos que lebh no Antigo Testamento é também usado para indicar o coração como a sede do pecado, a sede da renovação espiritual e o lugar da fé. Isto também é verdade de kardia. Além disso, podemos observar que as outras virtudes cristãs são descritas como kardia. O amor é associado com o coração em 2 Tessalonicenses 3.5 e 1 Pedro 1.22. A obediência é ligada ao coração em Romanos 6.17 e em Colossenses 3.22. O perdão é associado ao coração em Mateus 18.35. O coração é ligado com humildade em Mateus 11.29, e é descrito como o assento da pureza em Mateus 5.8 e Tiago 4.8. A gratidão é associada com o coração em Colossenses 3.16, e a paz é dita guardar o coração em Filipenses 4.7.

Em uma seção de sua Dogmatics na qual ele trata com “o homem como alma e corpo”, Karl Barth, falando do coração no Novo e no Antigo Testamentos, diz:

Se fôssemos verdadeiros com os textos bíblicos deveríamos dizer do coração que ele é in nuce o homem total em si mesmo, e, portanto, não somente o locus de sua atividade mas de sua essência...Assim, o coração não é meramente uma realidade mas a realidade do homem, ambos – da totalidade da alma e da totalidade do corpo. [50]

Assim, novamente aqui vemos a ênfase bíblica na totalidade do homem. Kardia significa a pessoa total em sua essência mais interior. No coração a atitude básica do homem para com Deus é determinada, seja de fé ou de incredulidade, de obediência ou de rebelião.

Embora estritamente falando o Antigo Testamento não tenha uma palavra para corpo, ele usa basar para descrever o aspecto físico do homem, sua carne. No Novo Testamento há duas palavras para corpo: sarx e soma. Arndt-Gringrich lista oito significados para sarx, usualmente traduzidos como “carne”; entre outros significados estão: “corpo”, “um ser humano”, “natureza humana”, “limitação física”, “o lado exterior da vida”, e “o instrumento desejoso do pecado” (particularmente nos escritos de Paulo).

Sarx no Novo Testamento, então possui dois significados principais: (1) o aspecto externo, físico da existência do homem — neste sentido ele pode ser usado do homem como um todo; e (2) carne como a tendência dentro do homem caído para desobedecer a Deus em todas as áreas da vida. [51] Neste segundo sentido, encontrado principalmente nas epístolas de Paulo, não devemos restringir o sentido de sarx como se referindo somente ao que usualmente chamamos de “pecados da carne” (pecados do corpo); ao contrário, deveríamos entendê-lo como referindo-se aos pecados cometidos pela pessoa total. Na lista das “obras da carne” (ta erga tes sarkos) encontrada em Gálatas 5.19-21, onde cinco de quinze dizem respeito aos pecados do corpo; o restante diz respeito ao que chamamos de “pecados do espírito”— como ódio, discórdia, ciúme, e que tais. Assim, mesmo quando a palavra sarks é usada neste segundo sentido, ela diz respeito à pessoa total, e não apenas a uma parte dela.

Agora nos voltamos para a palavra soma, usualmente traduzida como “corpo”. Arndt-Gingrich dá cinco significados, incluindo os seguintes: “o corpo vivo”, “o corpo da ressurreição”, e “a comunidade cristã ou igreja”. Clarence B. Bass, num artigo sobre o corpo nas Escrituras, também lista cinco definições da palavra soma: “a pessoa total como uma entidade diante de Deus”, “o locus do espiritual no homem”, “o homem total como destinado para a membrezia no reino de Deus”, “o veículo para a ressurreição”, e “o lugar do teste espiritual em termos do qual o julgamento acontecerá”. [52] Ele chega à seguinte conclusão:

Assim, está claro que o corpo é usado para representar a totalidade do homem, e milita contra qualquer idéia da visão bíblica do homem como existindo à parte da manifestação corporal, a menos que seja durante o estado intermediário [que é, o estado entre a morte e a ressurreição]. [53]

Podemos resumir nossa discussão das palavras bíblicas usadas para descrever os vários aspectos do homem, como segue: o homem deve ser entendido como um ser unitário. Ele tem um lado físico e um lado mental ou espiritual, mas não devemos separar esses dois. A pessoa humana deve ser entendida como uma alma corporificada ou um corpo “espiritualizado” (“animado”). [54] A pessoa humana deve ser vista em sua totalidade, não como uma composição de diferentes “partes”. Este é o ensino claro de ambos os Testamentos. [55]


Unidade PsicosomÁtica
Embora a Bíblia veja o homem como uma totalidade, ela também reconhece que o ser humano possui dois lados: o físico e o não-físico. Ele possui um corpo físico, mas ele também é uma personalidade. Ele tem uma mente com a qual ele pensa, mas também um cérebro que é parte do seu corpo, e sem o qual ele não pode pensar. Quando as coisas andam errada com ele, é necessária uma cirurgia, mas outras vezes ele pode precisar de um aconselhamento. O homem é uma pessoa que pode, contudo, ser vista de dois ângulos.

Como, então, haveremos de expressar esses “dois lados” do homem? Já observamos as dificuldades relacionadas com o termo dicotomia. Alguns tem falado de um dualismo, [56] enquanto outros preferem o termo dualidade, fazendo maior justiça à unidade do homem. Berkouwer, por exemplo, explica que “a dualidade e o dualismo não são idênticos de forma alguma, e...uma referência ao momento dual na realidade cósmica não implica necessariamente em dualismo.” [57] Semelhantemente, Anderson diz que “devemos fazer uma distinção entre uma ‘dualidade’ do ser no qual uma modalidade de diferenciação é constituída como uma unidade fundamental, e um ‘dualismo’ que opera contra essa unidade”. [58]

Minha preferência, contudo, é falar do homem como uma unidade psico-somática. A vantagem desta expressão é que ela faz plena justiça aos dois aspectos do homem, ao mesmo tempo em que enfatiza a sua unidade. [59]

Podemos ilustrar isto olhando para o relacionamento entre a mente e o cérebro. Reconhecendo que o homem deveria ser tido como uma unidade com muitos aspectos que constituem um todo indivisível, Donald M. MacKay faz três comentários significativos a respeito da relação entre mente e cérebro:

Nós não precisamos retratar a ‘mente’ e o ‘cérebro’ como duas espécies ‘substâncias” que se interagem. Não precisamos pensar dos eventos mentais e dos eventos cerebrais como dois conjuntos distintos de eventos...Parece-me suficientemente melhor descrever os eventos mentais e seus eventos cerebrais correlatos como os aspectos “interiores” e “exteriores” de uma e da mesma seqüência de eventos, que em sua plena natureza são mais ricos — tem mais para eles — do que pode ser expresso tanto numa categoria mental como física, isoladamente. [60]

Nós os estamos considerando [minha experiência consciente e as obras do meu cérebro] como dois aspectos igualmente reais de uma e da mesma unidade misteriosa. O observador externo vê um aspecto, como um padrão físico da atividade cerebral. O próprio agente conhece um outro aspecto como sua experiência consciente...O que estamos dizendo é que estes aspectos são complementares. [61]

O homem, então, existe num estado de unidade psico-somática. Assim, fomos criados, assim somos agora, e assim seremos após a ressurreição do corpo. Porque a redenção plena inclui a redenção do corpo (Rm 8.23; 1 Co 15.12-57), visto que o homem não é completo sem o corpo. O futuro glorioso dos seres humanos em Cristo inclui ambos, a ressurreição do corpo e uma nova terra purificada e aperfeiçoada. [62]


O Estado IntermediÁrio
Agora, enfrentaremos uma pergunta importante: O que dizer a respeito do período entre a morte e a ressurreição, o chamado “estado intermediário”? Quando uma pessoa morre, o que acontece? Visto que alguém não é completo sem o corpo, então uma pessoa cessa de existir até ao tempo da ressurreição? Ou ela “existe” num estado completamente inconsciente? Ou imediatamente após a morte recebe a ressurreição do corpo? Ou ela recebe uma espécie de corpo intermediário, para ser substituído mais tarde por um corpo ressuscitado?

A idéia de que o homem cessa de existir entre a morte e a ressurreição, sustentada pelas Testemunhas de Jeová e pelos Adventistas do Sétimo Dia, deve ser rejeitada como não-bíblicas. [63] A idéia de que após a morte as pessoas recebem imediatamente corpos “intermediários” também não encontra base nas Escrituras. O contraste no Novo Testamento é sempre entre o corpo presente e o corpo ressuscitado (cf. Fp 3.21; 1 Co 15.42-44). Os aderentes dessa idéia, às vezes, citam 2 Coríntios 5.1 para provar que receberemos tais corpos “intermediários”: “Sabemos que, se a nossa casa terrestre deste tabernáculo se desfizer, temos da parte de Deus um edifício, casa não feita por mãos, eterna, nos céus.” Mas esta passagem fala a respeito da casa eterna no céu. Se tivéssemos que entender esta “casa eterna” como se referindo a um novo corpo, ela não designaria um corpo “intermediário”, temporário. [64]

Uma outra idéia, usualmente chamada de “sono da alma”, é a de que o homem, ou sua “alma” , existe num estado inconsciente entre a morte e a ressurreição. Esta idéia tem sido sustentada por vários grupos cristãos. João Calvino escreveu sua primeira obra teológica, Psychopannychia, para combater os ensinos do sono-da-alma sustentados pelos anabatistas da sua época. [65] Mais recentemente, esta posição tem sido defendida por G. Vander Leeuw, [66] Paul Althaus [67] e Oscar Cullmann. [68]

Herman Dooyeweerd, rejeitando a dicotomia alma-corpo, afirma um novo entendimento dos dois aspectos do homem: coração e “função de capa” (functie-mantel), sendo este último termo relativo ao corpo, que é a totalidade de sua existência temporal e a estrutura inteira de todas as suas funções temporais. [69] O coração e a função-de-capa não devem ser entendidos como duas substâncias distintas dentro do ser humano, mas ao contrário, como descrevendo o homem em sua totalidade unitária.

Mas isto não responde à nossa pergunta sobre o que acontece ao ser humano entre a morte e a ressurreição. Quando a Dooyeweerd foi perguntado: Que espécie de funções podem ainda ser deixadas para a “alma” (anima rationalis separata, alma racional separada) quando ela separada de sua conjunção temporal com as funções pre-psíquicas [70] (i.e., pós a morte), sua resposta foi: “Nada” (niets!). [71] Em sua resposta, contudo, Dooyeweerd

Não nega a existência continuada da alma após a morte, nem ele apresenta o estado da alma desincorporada como sendo de inconsciência. Todavia, por privar a alma de suas funções temporais, ele parece deixar somente o mais indefinido dos aspectos no lugar das almas racionais desincorporadas. [72]

No mesmo raciocínio, Berkouwer afirma que nós não deveríamos concluir da “negativa” de Dooyeweerd de que ele rejeita a idéia da comunhão com Cristo após a morte. [73]

Quando Dooyeweerd pronunciou o seu “nada!”, ele estava respondendo a uma questão a respeito de uma idéia do homem que ele próprio não subscrevia: a de que o homem possuía duas “partes” separadas, um corpo mortal inferior e uma “alma racional” superior, indestrutível e imortal — o ensino dos filósofos gregos antigos. Assim, nós não seríamos justos com Dooyeweerd se aplicássemos suas palavras ao seu próprio entendimento do estado intermediário. Não obstante, devemos admitir que a afirmação é enigmática. Ela tem conduzido muitas a levantar questões a respeito da posição de Dooyeweerd a respeito do estado dos crentes entre a morte e a ressurreição. [74]

O ensino central da Bíblia a respeito do futuro do homem é o da ressurreição do corpo. Mas o Novo Testamento indica que o estado dos crentes entre a morte e a ressurreição é o de alegria provisória, expressa no dito de Paulo de ser “incomparavelmente melhor” do que o estado aqui na terra (Fp 1.23). Se isto é assim, a condição dos crentes durante o estado intermediário não pode ser um estado de não-existência ou de inconsciência.

Algumas vezes o Novo Testamento simplesmente diz que o crente continuará a existir neste estado de alegria provisória:

Entretanto, se o viver na carne traz fruto para o meu trabalho, já não sei o que hei de escolher. Ora, de um e de outro lado estou constrangido, tendo o desejo de partir e estar com Cristo, o que é incomparavelmente melhor. (Fp 1.22-23)

Jesus, respondendo ao pecador penitente, disse: “Em verdade te digo que hoje estarás comigo no paraíso. (Lc 23.43)

Temos, portanto, sempre ânimo, sabendo que, enquanto no corpo, estamos ausentes do Senhor; visto que andamos por fé, e não pelo que vemos. Entretanto estamos em plena confiança, preferindo deixar o corpo e habitar com o Senhor. (2 Co 5.6-8)

Na passagem aos Filipenses Paulo contrasta “o viver na carne” com “partir e estar com Cristo”, sugerindo claramente que é possível para uma pessoa não mais estar vivendo no presente corpo e, todavia, estar com Cristo — um estado que é muito melhor que o presente estado. Particularmente significativo neste ponto é a passagem de 2 Coríntios, onde Paulo contrasta o “enquanto no corpo” (endemountes en to somati) com o estar “ausente do corpo” (ekdemesai ek tou somatos). Se Paulo tivesse pretendido descrever a bênção do crente após a ressurreição, ele poderia Ter usado uma expressão como “ausentes deste corpo”, sugerindo que os crentes então estariam “habitando” um novo corpo. Mas ele simplesmente “ausentes do corpo”, dizendo aos seus leitores que ele está pensando de uma existência entre o corpo presente e o corpo da ressurreição. Observe que, em ambas as passagens, Paulo afirma que é possível para os crentes estarem com Cristo, mesmo quando eles não mais vivem em seus presentes corpos e antes deles receberem seus corpos ressuscitados.

Em outras vezes, contudo, o Novo Testamento usa as palavras “alma” (psyche) ou “espírito” (pneuma) para se referir aos crentes enquanto eles continuam a existir entre a morte e a ressurreição. A palavra “alma” é usada nas seguintes passagens:

Não temais os que matam o corpo e não podem matar a alma” (Mt 10.28).

Quando ele abriu o quinto selo, vi debaixo do altar as almas daqueles que tinham sido mortos por causa da palavra de Deus e por causa do testemunho que sustentavam (Ap 6.9).

A palavra “espírito é usada nos seguintes textos:

Mas tendes chegado ao monte Sião e à cidade do Deus vivo, a Jerusalém celestial, e a incontáveis hostes de anjos, e à universal assembléia e igreja dos primogênitos arrolados nos céus, e a Deus, o Juiz de todos, e aos espíritos dos justos aperfeiçoados. (Hb 12.22-23)

Pois também Cristo morreu, uma única vez, pelos pecados, o justo pelos injustos, para conduzir-vos a Deus; morto, sim, na carne, mas vivificado no espírito, no qual também foi e pregou aos espíritos em prisão, os quais noutro tempo foram desobedientes quando a longanimidade de Deus aguardava nos dias de Noé, enquanto se preparava a arca, na qual poucos, a saber, oito pessoas, foram salvos, através da água. (1 Pe 3.18-20)

Assim, às vezes, o Novo Testamento diz que nós que somos crentes, continuaremos a existir num estado provisório de alegria entre a morte e a ressurreição, enquanto que em outras vezes ele diz que as “almas” ou “espíritos” dos crentes ainda existirão durante aquele estado. Mas a Bíblia não usa palavras como “alma” e “espírito” no mesmo modo que nós o fazemos; dessa forma, estas passagens estão pretendendo tão somente nos dizer que os seres humanos continuarão a existir entre a morte e a ressurreição, enquanto esperam a ressurreição do corpo. A Bíblia não nos dá qualquer descrição antropológica da vida nesse estado intermediário. Podemos especular a respeito dela, podemos tentar imaginar a que esse estado será, mas não podemos formar nenhuma idéia clara da vida entre a morte e a ressurreição. A Bíblia ensina sobre ela, mas não a descreve. Como Berkouwer diz, o que o Novo Testamento nos conta a respeito do estado intermediário não é nada mais do que um sussurro. [75]

Embora o homem exista agora no estado de unidade psico-somática, esta unidade poderá ser temporariamente rompida no tempo da morte. Em 2 Coríntios 5.8 Paulo ensina claramente que os seres humanos podem existir à parte de seus corpos presentes. O mesmo ponto é assinalado em duas outras passagens do Novo Testamento:

A fim de que sejam os vossos corações confirmados em santidade, isentos de culpa, na presença de nosso Deus e Pai, na vinda de nosso Senhor Jesus Cristo, com todos os seus santos. (1 Ts 3.13)

Pois se cremos que Jesus morreu e ressuscitou, assim também Deus, mediante Jesus, trará juntamente em sua companhia os que dormem. (1 Ts 4.14)

Ambos os textos falam a respeito dos “santos” e “daqueles que dormem com Cristo”, como existindo após a morte e antes da ressurreição — observe que a ressurreição daqueles que dormiram em Cristo é mencionada mais tarde em 1 Tessalonicenses 4.16. [76] Pode ser observado também que neste verso a expressão “mortos em Cristo” claramente sugere que os crentes falecidos ainda estão em algum estado de existência antes da ressurreição.

O estado normal do homem é o da unidade psico-somática. No tempo da ressurreição ele será restaurado plenamente ao da unidade e, assim, uma vez mais, será tornado completo. Mas nós devemos reconhecer que, segundo o ensino bíblico, os crentes podem existir temporariamente num estado de alegria provisória, mesmo fora de seus corpos presentes durante o “tempo” entre a morte e a ressurreição. Este estado intermediário e, contudo, incompleto e provisório. Nós anelamos para a ressurreição do corpo e a nova terra como o clímax final do programa redentor de Deus.


ImplicaÇÕes PrÁticas
O entendimento do homem como uma pessoa total, como foi desenvolvido neste capítulo, tem importantes implicações práticas.

Primeira, a igreja deve estar preocupada com a pessoa total. Em sua pregação e em seu ensino a igreja deve dirigir-se não somente às mentes daqueles a quem ela serve, mas também às suas emoções e suas vontades. A pregação que meramente comunica informação intelectual a respeito de Deus ou da Bíblia está seriamente inadequada; os ouvintes devem ser despertados em seus corações e movidos a louvar a Deus. Os professores na escola dominical devem fazer mais do que simplesmente dar aos alunos uma rota de “conhecimento” versos da Bíblia ou das afirmações doutrinárias; seu ensino deve exigir uma resposta que envolva todos os aspectos da pessoa. Os programas da igreja para a juventude não deveria negligenciar o corpo; os esportes e as atividades externas deveriam ser encorajadas como um aspecto da vida cristã globalizada.

Em sua tarefa evangelista e missionária, a igreja deveria lembrar-se também que ela está tratando com pessoas completas. Embora o propósito principal de missões seja confrontar as pessoas com o evangelho, de forma que elas possam se arrepender de seus pecados e serem salvas através da fé em Cristo, todavia a igreja nunca deve se esquecer que os objetos de sua empreitada missionária têm necessidades tanto físicas quanto espirituais. Com isto em mente, o fato de que o homem é um ser unitário, deveríamos evitar expressões como “salvar a alma” quando descrevendo a tarefa do missionário, e deveríamos optar por uma abordagem holística ou abrangente em missões. Esta abordagem, que algumas vezes é conhecida como “o ministério da palavra e das ações”, direciona o missionário a estar preocupado não somente a respeito de ganhar convertidos para Cristo, mas também em melhorar as condições de vida desses convertidos e seus vizinhos, trabalhando em áreas como agricultura, dietética e saúde. O estabelecimento de escolas para a educação cristã dos nacionais e a manutenção de clínicas e hospitais tanto para o cuidado da saúde rotineira como da emergencial, entretanto, não deve ser considerado como estranho à província da atividade missionária da igreja, mas como um aspecto essencial dela. Arthur F. Glasser, ex-deão da Escola de Missões Mundiais do Seminário Teológico Fuller (California), diz que na tarefa como missionários cristãos,

O desenvolvimento da fé individual e interior deve ser acompanhado por uma obediência solidária e exterior ao mandato cultural extensamente detalhado na Santa Escritura. O mundo deve ser servido, não evitado. A justiça social deve ser promovida, e as questões de guerra, racismo, pobreza e desequilíbrio econômico devem se tornar uma preocupação ativa e participativa daqueles que professam crer em Jesus Cristo. Não é suficiente que a missão cristã seja redentora; ela também deve ser profética. [77]

A escola deveria também estar preocupada a respeito da pessoa total. Embora um dos principais propósitos da escola seja a instrução intelectual, o professor nunca deveria esquecer que o aluno que está ensinando é uma pessoa total. A escola, portanto, não deveria treinar apenas a mente, mas deveria apelar para as emoções e vontade, visto que o ensino eficaz deve produzir no aluno tanto o amor pela matéria como um desejo de aprender mais a respeito dela. Além disso, as escolas deveriam evidenciar uma preocupação pelo corpo assim como pela mente. Os esportes de espectadores, no qual poucos jogam e muitos meramente observam, têm o seu lugar, mas muito mais importante para o corpo discente como um todo é um bom programa de educação física, com uma ênfase nos esportes de jogos internos que envolvam todos os estudantes.

O conceito da pessoa total tem também implicações para a vida de família. Os pais crentes ficarão preocupados em ensinar a seus filhos a respeito de Deus, em treiná-los na vida cristã, e a discipliná-los em amor quando carecem disto. Mas os pais devem também estar preocupados a respeito de assuntos como uma dieta saudável e própria para o cuidado do corpo. Está sendo cada vez mais reconhecido hoje que um programa regular de exercício físico é essencial para uma boa saúde; os pais, portanto, deveriam tentar ensinar a seus filhos o cuidado do corpo, não somente por preceito mas também pelo exemplo.

Além disso, o conceito da pessoa total tem implicações para a medicina. Em reconhecimento do fato de que o homem é uma unidade psico-somática, a ciência médica desenvolveu recentemente uma abordagem chamada medicina holística. [78] A medicina holística tem sido definida como “um sistema de saúde que enfatiza a responsabilidade pessoal para a própria saúde e empenha-se por um relacionamento cooperativo entre todos os envolvidos em proporcionar cuidados de saúde.” [79] Os praticantes da saúde holística “enfatizam a necessidade da busca pela pessoa total, incluindo condição física, nutrição, maquiagem emocional, estado espiritual, valores de estilo de vida e ambiente.” [80]

Num livro fascinante entitulado Anatomy of an Illness (“Anatomia de uma Doença”) Norman Cousins faz um comentário de que um dos aspectos mais importantes na recuperação de uma doença está na “vontade de viver”: “A vontade de viver não é uma abstração teórica, mas uma realidade fisiológica com características terapêuticas.” [81] Cousins relata que centenas de médicos lhe têm dito que “nenhum remédio que eles podem dar aos pacientes foi tão potente como o estado de alma que um paciente traz para sua própria doença.” [82] Segundo Cousins, nos exercícios de graduação da Escola de Medicina da Universidade John Hopkins em 1975, o Dr. Jerome D. Frank disse aos graduandos “que qualquer tratamento de uma doença que não ministre também ao espírito humano é grosseiramente deficiente.” [83] A Conclusão é clara: A cura e a manutenção da saúde física envolve a pessoa total. Médicos, enfermeiras, pastores e pacientes devem sempre ter isto em mente. [84]

Finalmente, o conceito da pessoa total tem implicações importantes para a psicologia e para o aconselhamento. Estudos recentes de psicologia têm levado a uma nova ênfase na totalidade do homem — uma ênfase que é chamada algumas vezes de “teoria organísmica”. [85] Hall and Lindzey afirmam que a nova ênfase em psicologia sobre a pessoa total é uma reação contra o dualismo mente-corpo, a psicologia das faculdade, e o behaviorismo (comportamentalismo). Esta nova ênfase, eles dizem, tem sido grandemente aceita:

Quem há em psicologia hoje que não seja um proponente dos principais princípios da teoria organísmica que o total é algo além da soma de suas partes, que o que acontece a uma parte acontece ao todo, e que não há nenhum compartimento separado dentro do organismo? [86]

Os conselheiros devem lembrar-se também do fato de que o homem é uma pessoa total. Eles deveriam ser treinados a reconhecer os problemas que requerem a especialidade de outros além de si mesmos, e deveriam encaminhar seus aconselhandos, quando necessário, a médicos e psiquiatras. Os problemas mentais não deveriam ser tidos como totalmente distintos dos problemas físicos, porque nenhum tipo de problema está sempre separado do outro. Visto drogas anti-depressivas podem curar certos tipos de depressão, um conselheiro sábio fará uso desses meios. Pacientes que possuem problemas muito profundos, de fato, podem mais eficazmente ser curados através de esforços combinados de uma equipe terapêutica, consistindo, talvez, de um psicólogo, um assistente social, um médico e um psiquiatra. [87]

O conselheiro não deveria pensar de uma saúde mental e espiritual como coisas totalmente separadas. Visto que o homem é uma pessoa total, o espiritual e o mental são aspectos de uma totalidade, de forma que cada aspecto influencia e é influenciado pelo outro. Howard Clinebell diz o seguinte: “A saúde espiritual é um aspecto indispensável da saúde mental. Os dois podem estar separados somente numa base teórica. Nos seres humanos vivos, a saúde espiritual e mental estão inseparavelmente entrelaçadas.” [88]

Algumas vezes o conselheiro pastoral pode pensar que a mera

citação dos versos da Bíblia pode ser tudo o de que necessita para ajudar o membro da igreja a resolver um difícil problema espiritual. Mas um entendimento do homem como uma pessoa total conduz-nos a perceber que tal abordagem pode ser totalmente inadequada. David G. Benner, num artigo no qual ele desafia a opinião comum de que a personalidade humana pode ser dividida em duas partes, uma “parte” espiritual e uma psicológica, ilustra seu ponto da seguinte maneira:

A tentação, portanto, de rotular a dificuldade de uma pessoa em aceitar o perdão de Deus de seus pecados como um problema espiritual deve ser resistido a fim de deixar o conselheiro muitíssimo aberto para tratar com ambos os aspectos, psicológico e espiritual, daquele problema. Assumir natureza espiritual essencial e proceder por meio de uma apresentação explícita de certas verdades bíblicas é esquecer que o perdão, esteja ele sendo dado ou recebido, é mediado por processos psico-espirituais da personalidade e, portanto, esses outros fatores psicológicos podem também estar envolvidos e outras técnicas sejam apropriadas. [89]

O conselheiro cristão, portanto, deveria ver os problemas de seus aconselhandos como problemas da pessoa total. Ele deveria não somente tratar com o aconselhando como uma pessoa total, mas deveria também tentar restaurá-lo à sua totalidade, que é a marca de uma vida saudável e piedosa. [90]

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NOTAS:

[1] G. C. Berkouwer, De Mens het Beeld Gods (Kampen: Kok, 1957), p. 211. Cf. Ray S. Anderson, On Being Human (Grand Rapids: Eerdmans, 1982), p. 213.

[2] John A. T. Robinson, The Body (London: SCM Press, 1952), p. 16.

[3] A System of Biblical Psychology, (Edinburgh: T & T Clark, 1867), p. 16.

[4] Bijbelsche en Religieuze Psychologie (Kampen: Kok, 1920), p. 13.

[5] Man, p. 195.

[6] Ver acima, p. 75-82 (texto em inglês)

[7] Ver acima, p. 34-35 (texto em inglês).

[8] Ver Louis Berkhof, History of Christian Doctrines (Grand Rapids: Eerdmans, 1937), p. 106-107; J. L. Neve, A History of Christian Thought (Philadelphia: United Lutheran Publication House, 1943), p. 126; Anderson, On Being Human, p. 207-8.

[9] Man, p. 209. Ver também o comentário de A. Grillmeier citado em n.20. Dichotomy é a idéia de que o homem deve ser entendido como consistindo de duas “partes”, corpo e alma.

[10] J. N. D. Kelly, Early Christian Doctrines (London: Black, 1958), p. 292.

[11] System of Biblical Psychology, pp. Vii, 247-66.

[12] The Tripartite Nature of Man (Edinburgh: T & T Clark, 1866).

[13] Outlines of Biblical Psychology, (Edinburgh: T & T Clark, 1877), p. 38.

[14] Theology of the Old Testament, edit. G. E. Day (1873; Grand Rapids: Zondervan), 149-51.

[15] The Release of the Spirit (Indianapolis: Sure Foundation, 1956), 6.

[16] The Handbook of Happiness (Denver: Heritage House Publications, 1971), 28; ver também p. 27-58.

[17] Wilfred Brockelman, Gothard, The Man and his Ministry: An Evaluation (Santa Barbara: Quill Publications, 1976), 85-96.

[18] The Scofield Reference Bible (New York: Oxford University Press, 1909), no texto de 1 Ts 5.23; The New Scofield Reference Bible (New York: Oxford University Press, 1967) no texto de 1 Ts 5.23.

[19] Bijbelsche en Religieuze Psychologie, 53. Cf. TDNT, 6:395.

[20] Sobre a interpretação de Hb 4.12 e 1 Ts 5.23, ver Bavinck, Bijbelsche Psychologie, 58-59; Louis Berkhof, Teologia Sistemática (Campinas: Luz Para o Caminho, 199....), p.......; Berkouwer, Man, 210; Sobre Hb 4.12 ver também F. F. Bruce, The Epistle to the Hebrews, in the New International Commentary sobre a série do Novo Testamento (Grand Rapids: Eerdmans, 1964), 80-83; Para uma defesa do pensamento tricotômico, ver F. Delitzsch, The Epistle to the Hebrews, (Edinburgh: T. & T. Clark, 202-14, especialmente 212-14.

[21] Teologia Sistemática, p..........; cf ª H. Strong, Systematic Theology, vol. 2 (Philadelphia: Griffith and Rowland, 1907), 483-88; J. T. Mueller, Christian Dogmatics, (St. Louis: Concordia, 1934), 184; H. C. thiessen, Introductory Lectures in Systematic Theology (Grand Rapids: Eerdmans, 1949), 225-26; Gordon H. Clark, The Biblical Doctrine of Man (Jefferson, MD: The Trinity Foundation, 1984), 33-45.

[22] Cf o meu livro A Bíblia e o Futuro, (pp 86-87 edição em inglês). Sobre este ponto ver também Berkouwer, Man, 212-22.

[23] The Body, 16.

[24] G. E. Ladd, A Theology of the New Testament (Grand Rapids: Eerdmans, 1974), 457.

[25] Francis Brown, S. R. Driver, e Charle Briggs, Hebrew and English Lexicon of the Old Testament (New York: Houghton Mifflin, 1907).

[26] Provavelmente o exemplo mais conhecido do uso dessa palavra se referindo ao homem seja Gn 2.7 – “Então formou o Senhor Deus ao homem do pó da terra, e lhe soprou nas narinas o fôlego da vida, e o homem passou a ser alma vivente (nephesh chayyah)”.

[27] “Psyche”, TDNT, 9:620.

[28] The Pauline View of Man (London: Macmillan, 1956), 90.

[29] F. H. Von Meyenfeldt, Het Hart (Leb, Lebab) in het Oude Testament (Leiden: E. J. Brill, 1950), 218-19.

[30] Wijsbegeerte der Wetsidee, vol. 1 (Amsterdam: H. J. Paris, 1935), 30.

[31] On Being Human, 211.

[32] The Christian Doctrine of Man (Edinburgh: T. & T. Clark, 1911), 26.

[33] “Basar”, na obra de G. Johannes Botterweck e Helmer Ringgren, editores, Theological Dictionary of the Old Testament, (Grand Rapids: Eerdmans, 1977), p. 325.

[34] Ibid., 325.

[35] Anthropologie des Alten Testaments (Munich: Chr. Kaiser, 1973), 55.

[36] F. B. Knutson, “Flesh”, ISBE, 2.314.

[37] “Corpo”, ibid., 1:528-29. Observe também o comentário de J. Pedersen: “Alma e corpo [no uso do Antigo Testamento] são tão intimamente unidos que uma distinção não pode ser feita entre eles. Eles são mais do que ‘unidos’; o corpo é a alma em sua forma exterior” (Israel: Its Life and Culture, vol. 1 [London: Oxford University Press, 1926], 171).

[38] The Christian Doctrine of Man, 27.

[39] William F. Arndt e F. Wilbur Gingrich, A Greek-English Lexicon of the New Testament and Other Early Christian Literature (Chicago: Univsersity of Chicago Press, 1957).

[40] “Psyche”, TDNT, 9:639.

[41] Ibid., 642.

[42] Ibid., 644.

[43] Ibid., 648.

[44] Ibid., 654.

[45] “Pneuma”, TDNT, 6:435.

[46] Ladd, A Theology of the New Testament, 461-63.

[47] The Pauline View of Man, 135.

[48] New Testament Theology, 459.

[49] “Kardia”, TDNT, 3:611-12.

[50] Church Dogmatics (Edinburgh: T. & T. Clark, 1960), III/2, 436.

[51] Um estudo mais antigo, embora competente, a respeito do significado de sarx nos escritos de Paulo é o de Wm. P. Dickson, St. Paul’s Use of the Terms Flesh and Spirit (Glasgow: Maclehose, 1883). Um estudo mais recente é o de J. A. Robinson, The Body (1952.

[52] “Body, ISBE, 1:529.

[53] Ibid.

[54] Barth, Church Dogmatics, III/2, 350.

[55] Em acréscimo aos estudos da visão bíblica sobre a pessoa total referida acima, podemos enumerar os seguintes: G. C. Berkouwer, “The Whole Man”, em Man, 194-233; C. A. Van Peursen, Body, Soul, Spirit: A Survey of the Body-Mind Problem, (London: Oxford University Press, 1966); H. Ridderbos, Paul: Na Outline of His Theology (Grand Rapids: Eerdmans, 1975), 64-68, 114-26; Rudolf Bultmann, Theology of the New Testament, vol. 1 (New York: Scribner, 1951), 190-227; Werner G. Kümmel, Man in the New Testament (London: Epworth, 1963); Robert Jewett, Paul’s Anthropological Terms (Leiden: E. J. Brill, 1971).

[56] John Cooper, “Dualism and the Biblical View of Human Beings”, Reformed Journal 32, no. 9 e 10 (Setembro e Outubro de 1982).

[57] Man, 211.

[58] On Being Human, 209. Ver também Robert H. Gundry, Soma in Biblical theology (Cambridge: Cambridge University Press, 1976), 83. Gundry prefere “dualidade” ao invés de “dualismo” como sendo ensinado em ambos os Testamentos, particularmente nos escritos de Paulo.

[59] Este termo também é usado por John Murray, “Thrichotomy”, em sua obra Collected Writings of John Murray, vol. 2 (Edinburgh: Banner of Truth Trust, 1977), 33 (“o homem é um ‘ser psico-somático”); e por G. W. Bromiley, “Anthropology”, ISBE, 1:134 (“o homem tem um lado físico e um lado espiritual...ambos pertencem conjuntamente a uma unidade psico-somática”); ver também Henry Stob, Ethical Reflections (Grand Rapids: Eerdmans, 1978), 226.

[60] Donald M. MacKay, Brains, Machines and Persons (Grand Rapids: Eerdmans, 1980), 14.

[61] Ibid., 83. Mais nesse livro (p. 101) MacKay descreve a vida futura do cristão dum modo no qual ele parece deixar lugar somente para a ressurreição do corpo e não para uma existência continuada do crente no estado intermediária (ver abaixo, p. 218-22). Se esta é a posição de MacKay, eu não concordaria com ele. Podemos ainda, contudo, aceitar as afirmações feitas nas citações acima como descrições corretas da unidade da mente com o cérebro durante esta presente vida.

[62] Ver esse assunto no meu livro A Bíblia e o Futuro, capítulos 17 e 20.

[63] Ver meu trabalho The Four Major Cults (Grand Rapids: Eerdmans, 1963), 345-71.

[64] Para uma interpretação diferente da “casa eterna no céu”, ver A Bíblia e o Futuro, pp. 104-6 (em inglês).

[65] Ver Calvino, Tracts and Treatises of the Reformed Faith, ,vol. 3, (Grand Rapids: Eerdmans, 1958), 413-90.

[66] Onsterfelijkheid of Opstanding, (Assen: Van Gorcum, 1936).

[67] Die Letzten Dinge, (1922: Gütersloh: bertelsmann, 1957).

[68] Immortality of the Soul or Resurrection of the Dead? (New York: Macmillan, 1964), 10-11.

[69] William G. Young, “The Nature of Man in the Amsterdam Philosophy”, Westminster Theological Journal 22, no. 1 (Novembro, 1959):7.

[70] A saber, as funções aritméticas, especiais, físicas e orgânicas.

[71] Herman Dooyeweerd, “Kuyper’s Wetenschapsleer”, Philosophia Reformata 4 (1939): 204.

[72] Young, “The Nature of Man”, 10.

[73] Man, 256.

[74] Ver a discussão de Berkouwer sobre este assunto em Man, 255-257.

[75] De Wederkomst van Christus, vol. 1 (Kampen: Kok, 1961), 79. Sobre o estado intermediário, ver adicionalmente Berkouwer, The Return of Christ, (Grand Rapids: Eerdmans, 1972), 32-64; e A Bíblia e o Futuro, 92-108 (texto inglês)

[76] Sobre esses versos ver W. Hendriksen, I and II Tessalonians, no Comentário do Novo Testamento (Grand Rapids: Baker, 1955); Leon Morris, The First and Second Epistles to the Thessalonians, in the New International Commentary on the New Testament Series (Grand Rapids: Eerdmans, 1959).

[77] “Missiology”, no Evangelical Dictionary of Theology, editado por Walter ª Elwell (Grand Rapids: Baker, 1984), 726. Ver também William Dyrness, Let the Earth Rejoice: A Biblical Theology of Holistic Mission (Westchester, IL: Crossway Books, 1983); Francis M. Dubose, God who Sends: a Fresh Quest for Biblical Mission (Nashville: Broadman Press, 1983); e J. H. Boer, Missions: Heralds of Capitalism ou Christ? (Ibadan, Nigeria: Day Star Press, 1984).

[78] The American Holistic Medical Association foi fundada em Maio de 1978.

[79] “Holistic Medicine”, Encyclopedia Americana, vol. 14 (Danbury, CT: Grolier, 1983), 294.

[80] Ibid.

[81] New York: Norton, 1979, 44.

[82] Ibid., 139.

[83] Ibid., 133.

[84] Entre a literatura volumosa sobre a medicina holística, os seguintes estudos podem ser observados: David Allen, Whole Person Medicine (Downers Grove: InterVarsity Press, 1980); Ed Gaedwag, Inner Balance: The Power of Holistic Healing (Englewood Cliffs, NJ: Prentice-Hall, 1979); Jack La Patra, Healing: The Coming Revolution in Holistic Medicine (New York: McGraw, 1978); Morton Walker, Total Health: The Holistic Alternative to Traditional Medicine (New York: Everest House, 1979).

[85] Ver “Organismic Theory” na obra de Calvin S. Hall e Gadner Lindzey, Theories of Personality, (New York: John Wiley, 1970), 298-337. Observe a bibliografia no final do capítulo.

[86] Ibid., 330

[87] Karl Menninger The Vital Balance (New York: Viking Press, 1963), 335.

[88] Mental Health Through Christian Community (Nashville: Abingdon, 1965), 20.

[89] “What God Hath Joined: The Psychospiritual Unity of Personality”, The Bulletin: Christian Association for Psychological Studies 5, no. 2 (1979): 11.

[90] Sobre a pessoa total, veja também Salvatore R. Maddi, Personality Theories (Homewood, IL: Dorsey Press, 1980).

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Capítulo 12 do excelente livro “Criados à Imagem de Deus”, da Cultura Cristã.

O Problema do Mal - por Vincent Cheung

INTRODUÇÃO

Uma das objeções mais populares, porém sobreestimada, contra o Cristianismo, é o assim chamado “problema do mal”. A objeção reivindica que, o que o Cristianismo afirma sobre Deus é logicamente irreconciliável com a existência do mal. Aqueles que fazem esta objeção reivindicam que eles sabem, com certeza, que o mal existe, e, visto que isto é incompatível com o Deus cristão, então segue-se que não há Deus, ou isto mostra, no mínimo, que o que o Cristianismo afirma sobre Deus é falso.

Usando o problema do mal, os incrédulos têm conseguido confundir muitos cristãos professos, e parece que muitos daqueles que reivindicam ser cristãos estão, eles mesmos, perturbados pela existência do mal, ou pela quantia de mal neste mundo. Alguns crentes conseguem fornecer respostas plausíveis que não são totalmente convincentes, enquanto muitos outros simplesmente chamam a existência do mal de um mistério. Contudo, até onde a Escritura trata do assunto, visto que que algo foi revelado, os cristãos não têm o direito de chamá-lo de um mistério no sentido de algo que está oculto. Simplesmente porque não podemos entender tudo sobre a existência do mal, não significa que devemos ignorar o que a Escritura claramente revela sobre ele.

Por outro lado, as respostas meramente plausíveis são insuficientes quando a Bíblia fornece uma resposta infalível e uma defesa invencível. No que se segue, veremos que a existência do mal não apresenta nenhum desafio ao conceito cristão de Deus, ou a qualquer aspecto do Cristianismo. Na verdade, são as cosmovisões não-cristãs que não podem fazer sentido da existência do mal, se é que elas podem ter um conceito do mal.

O PROBLEMA

Os cristãos afirmam que Deus é onipotente (todo-poderoso) e oni-benevolente (todo-amoroso). Nossos oponentes argumentam que, se Deus é todo-poderoso, então Ele possui a capacidade de acabar com o mal, e se Ele é todo-amoroso, então Ele deseja acabar com o mal; [1] contudo, visto que o mal ainda existe, isto significa que Deus não existe, ou pelo menos significa que as coisas que os cristãos afirmam sobre Ele são falsas. Isto é, mesmo que Deus exista, visto que o mal também existe, Ele não pode ser tanto todo-poderoso como todo-amoroso, mas os cristãos insistem que Ele é tanto todo-poderoso como todo-amoroso; portanto, o Cristianismo deve ser falso.

Aqueles que usam este argumento contra o Cristianismo podem formulá-lo de maneiras diferentes, mas, a despeito da forma precisa em que o argumento é tomado, o ponto é que os cristãos não podem afirmar todos os atributos divinos, pois assim fazer seria logicamente incompatível com o problema do mal. E se este é o caso, então, o Cristianismo é falso. Embora os cristãos tenham agonizado com este assim chamado “problema do mal” por séculos, o argumento é extremamente fácil de refutar; ele é uma das objeções mais estúpidas que já vi, e mesmo como criança eu o consideraria um argumento tolo. Muitas pessoas têm inquietações com a existência do mal, não porque o mesmo possua qualquer desafio lógico ao Cristianismo, mas porque eles são sobrepujados pelas emoções que o assunto gera, e estas fortes emoções desqualificam efetivamente o nível mínimo de julgamento e inteligência que eles normalmente exibem.

Agora, visto que os oponentes do Cristianismo reivindicam que o problema do mal é um argumento lógico contra o Cristianismo, em resposta precisamos somente mostrar que a existência do mal não contradiz logicamente o que o Cristianismo ensina sobre Deus. Embora a Escritura também responda suficientemente aos aspectos emocionais deste assunto, não é nossa responsabilidade apresentar e defender estas respostas dentro do contexto do debate lógico. De fato, os problemas emocionais que as pessoas têm com a existência do mal e sua falta de respostas a estes problemas são totalmente consistentes com o que a Escritura ensina. Assim, nos focaremos em responder à existência do mal como um desafio lógico.

LIVRE-ARBÍTRIO

Muitos cristãos favorecem a “defesa do livre-arbítrio” ao responder o problema do mal. No contexto das narrativas bíblicas, esta abordagem declara que, quando Deus criou o homem, Ele lhe concedeu o livre-arbítrio — um poder para fazer decisões independentes, até mesmo se rebelar contra o seu Criador. Certamente Deus estava ciente de que o homem pecaria, mas este foi o preço de conceder ao homem o livre-arbítrio. Ao criar o homem com o livre-arbítrio, Deus também criou o potencial para o mal, mas, até onde a defesa do livre-arbítrio vai, visto que o homem é verdadeiramente livre, a culpa da realização deste potencial para o mal pode ser lançada somente sobre o próprio homem. Aqueles que usam a defesa do livre-arbítrio adicionariam que o potencial ou até mesmo a realização do mal não é um preço tão alto para se conceder ao homem um livre-arbítrio genuíno.

Embora muitos cristãos professos usem a defesa do livre-arbítrio, e a algumas pessoas a explicação possa parecer razoável, esta é uma teodicéia irracional e anti-bíblica — ela falha em responder o problema do mal, e contradiz a Escritura. Primeiro, esta abordagem somente posterga o tratamento do problema, visto que transforma o debate de porque o mal existe no universo de Deus para porque Deus criou um universo com o potencial para tão grande mal. Segundo, os cristãos afirmam que Deus é onisciente, de forma que Ele não criou o universo e a humanidade apenas estando ciente de que eles tinham o potencial para se tornarem maus; antes, Ele sabia com certeza que eles se tornariam maus. Assim, seja diretamente ou indiretamente, Deus criou o mal. [2]

Nós podemos distinguir entre mal natural e mal moral — mal natural inclui desastres naturais tais como terremotos e enchentes, enquanto que o mal moral refere-se às ações ímpias que as criaturas racionais cometem. Agora, mesmo se a defesa do livre-arbítrio fornecer uma explanação satisfatória para o mal moral, ela falha em tratar adequadamente o mal natural. Alguns cristãos podem reivindicar que é o mal moral que leva ao mal natural; contudo, somente Deus tem o poder para criar uma relação entre os dois, visto que os terremotos e as enchentes não têm relações necessárias com os assassinatos e roubos, a menos que Deus o faça — isto é, a menos que Deus decida causar terremotos e enchentes por causa dos assassinatos e roubos cometidos pelas Suas criaturas. Assim, Deus novamente parece ser a causa última do mal, seja natural ou moral.

Mesmo se o pecado de Adão tivesse trazido morte e decadência, não somente à humanidade, mas também aos animais, a Escritura insiste que nenhum pardal pode morrer aparte da vontade de Deus (Mateus 10:29). Isto é, se há qualquer relação entre o mal moral e o mal natural, a relação não é inerente (como se algo fosse inerente aparte da vontade de Deus), mas, antes, é soberanamente imposta por Deus. Mesmo o aparentemente insignificante não pode ocorrer sem, não meramente a permissão, a vontade ativa e o decreto de Deus. Os cristãos não são deístas — nós não cremos que este universo funciona por uma série de leis naturais que são independentes de Deus. A Bíblia nos mostra que Deus está agora ativamente administrando o universo, de forma que nada pode acontecer ou continuar a existir aparte do poder ativo e do decreto de Deus (Colossenses 1:17; Hebreus 1:3). Se devemos usar o termo de alguma forma, o que chamamos “leis naturais” são somente descrições de como Deus age regularmente, embora Ele não esteja, de forma alguma, obrigado a agir dessa maneira.

Os cristãos devem rejeitar a defesa do livre-arbítrio simplesmente porque a Escritura rejeita o livre-arbítrio; antes, a Escritura ensina que Deus é o único que possui livre-arbítrio. Ele diz em Isaías 46:10, “O meu conselho subsistirá, e farei toda a minha vontade”. Por outro lado, a vontade do homem é sempre escrava, ou do pecado ou da justiça: “Mas graças a Deus que, embora tendo sido escravos do pecado, obedecestes de coração à forma de doutrina a que fostes entregues. E libertos do pecado, fostes feitos escravos da justiça” (Romanos 6:17-18). O livre-arbítrio não existe — ele é um conceito assumido por muitos cristãos professos sem uma garantia bíblica.

Outra suposição popular é que a capacidade moral é o pré-requisito de responsabilidade moral. Em outras palavras, a suposição é que, se uma pessoa é incapaz de obedecer às leis de Deus, então, ela não pode ser moralmente responsável de responder a estas leis, e, portanto, Deus não poderia e não os puniria por desobedecer estas leis. Contudo, assim como a suposição de que o homem tem livre-arbítrio, esta suposição de que a responsabilidade moral pressupõe a capacidade moral é também anti-bíblica e injustificável.

Com referência aos incrédulos, Paulo escreve, “Porquanto a inclinação da carne é inimizade contra Deus, pois não é sujeita à lei de Deus, nem em verdade o pode ser” (Romanos 8:7). Se é verdade que a responsabilidade moral pressupõe a capacidade moral, e Paulo declara que o pecador carece desta capacidade, então, segue-se que nenhum pecador é responsável por seus pecados. Isto é, se um pecador é apenas um pecador, se ele tem a capacidade de obedecer, mas se recusa a obedecer, e, visto que Paulo diz que o pecador realmente carece da capacidade para obedecer, então, segue-se que um pecador não é um pecador. Contudo, isto é uma contradição, e é uma contradição que a Bíblia nunca ensina.

A Bíblia ensina que o não-cristão é um pecador, e ao mesmo tempo ensina que ele carece da capacidade para obedecer a Deus. Isto significa que o homem é moralmente responsável, mesmo se lhe falta a capacidade moral; isto é, o homem deve obedecer a Deus mesmo se ele não o pode fazer. É pecaminoso para uma pessoa o desobedecer a Deus, tenha ele ou não a capacidade para agir de outra forma. Assim, a responsabilidade moral não é baseada na capacidade moral ou no livre-arbítrio; antes, a responsabilidade moral é baseada na soberania de Deus — o homem deve obedecer aos mandamentos de Deus porque Deus diz que o homem deve obedecer, e se ele tem ou não a capacidade para obedecer, é irrelevante.

Em primeiro lugar, o livre-arbítrio é logicamente impossível. Se descrevermos o exercício do livre-arbítrio como um movimento da mente em certa direção, a questão que se levanta é: o que move a mente e por que ele move a mente para onde ela é movida? Responder que o “eu” move a mente não responde a pergunta, visto que a mente é o eu, e, portanto, a mesma pergunta permanece.

Por que a mente se move numa direção ao invés de outra? Se pudermos traçar a causa de seus movimentos e direção aos fatores externos à própria mente, fatores que, eles mesmos, influenciam a consciência, e dessa forma, influenciam e determinam a decisão, então, como este movimento da mente é livre? Se pudermos traçar a causa às disposições inatas de uma pessoa, então, este movimento da vontade não é livre ainda, visto que, embora estas disposições inatas influenciem decisivamente a decisão, a própria pessoa não escolheu livremente estas disposições inatas em primeiro lugar.

O mesmo problema permanece se dissermos que as decisões de uma pessoa são determinadas por uma mistura de suas disposições inatas com as influências externas. Se a mente toma decisões baseadas em fatores não escolhidos pela mente, então, estas escolhas nunca são livres no sentido em que elas são feitas aparte do controle soberano de Deus — elas não são feitas livres de Deus. A Escritura ensina que Deus não somente exerce controle imediato sobre a mente do homem, mas Deus também determina absolutamente todas as disposições inatas e os fatores externos relacionados com a vontade do homem. É Deus quem forma uma pessoa no ventre, e é Ele quem arranja as circunstâncias externas pela Sua providência.

Portanto, embora possamos afirmar que o homem tem uma vontade como uma função da mente, de forma que a mente faz escolhas, estas nunca são escolhas livres, porque tudo o que tem a ver com cada decisão foi determinado por Deus. Visto que a vontade nunca é livre, nunca deveríamos usar a teodicéia do livre-arbítrio quando tratando do problema do mal.


A SOBERANIA DE DEUS

Muitos cristãos professos se sentem desconfortáveis com o ensino bíblico de que o homem não tem livre-arbítrio, visto que o mesmo parece fazer Deus “responsável” pela existência e continuação do mal. Assim, nesta seção, providenciaremos uma breve exposição do que a Escritura ensina sobre o assunto, mostrando que afirmar a Escritura é rejeitar o livre-arbítrio.

A Escritura ensina que a vontade de Deus determina todas as coisas. Nada existe ou acontece sem Deus, não meramente permitindo, mas ativamente desejando que exista ou aconteça:

Eu anuncio o fim desde o princípio, e desde a antiguidade as coisas que ainda não sucederam; Eu digo: O meu conselho será firme, e farei toda a minha vontade (Isaías 46:10).

Não se vendem dois passarinhos por um ceitil? e nenhum deles cairá em terra sem a vontade de vosso Pai (Mateus 10:29).

Deus controla não somente os eventos naturais, mas Ele controla também todos os assuntos e decisões humanas:

Bem-aventurado aquele a quem tu escolhes, e fazes chegar a ti, para que habite em teus átrios; nós seremos fartos da bondade da tua casa e do teu santo templo (Salmos 65:4).

O SENHOR fez tudo para seus próprios fins; sim, até o ímpio para o dia do mal (Provérbios 16:4).

O coração do homem planeja o seu caminho, mas o SENHOR determina os seus passos (Provérbios 16:9)

Os passos do homem são dirigidos pelo SENHOR; como, pois, entenderá o homem o seu caminho? (Provérbios 20:24).

Como ribeiros de águas assim é o coração do rei na mão do SENHOR; Ele o inclina a todo o seu querer (Provérbios 21:1)

Visto que os seus dias estão determinados; tu tens decretado o número dos seus meses; e tu lhe puseste limites, e não passará além deles (Jó 14:5).

E todos os moradores da terra são reputados em nada, e segundo a sua vontade ele opera com o exército do céu e os moradores da terra; não há quem possa estorvar a sua mão, e lhe diga: Que fazes? (Daniel 4:35).

Antes se despediu deles, e prometeu: Se Deus quiser, outra vez voltarei a vós. E navegou de Éfeso (Atos 18:21)

Porque Deus é o que opera em vós tanto o querer como o efetuar, segundo a sua boa vontade (Filipenses 2:13).

Eia agora vós, que dizeis: Hoje, ou amanhã, iremos a tal cidade, e lá passaremos um ano, e contrataremos, e ganharemos; Digo-vos que não sabeis o que acontecerá amanhã. Porque, que é a vossa vida? É um vapor que aparece por um pouco, e depois se desvanece. Em lugar do que devíeis dizer: Se o Senhor quiser, e se vivermos, faremos isto ou aquilo (Tiago 4:13-15)

Digno és, Senhor, de receber glória, e honra, e poder; porque tu criaste todas as coisas, e por tua vontade são e foram criadas (Apocalipse 4:11)

Se Deus realmente determina todos os eventos naturais e assuntos humanos, então, segue-se que Ele também decretou a existência do mal. Isto é o que a Bíblia explicitamente ensina:

E disse-lhe o SENHOR: Quem fez a boca do homem? ou quem fez o mudo, ou o surdo, ou o que vê, ou o cego? Não sou eu, o SENHOR? (Êxodo 4:11).

Quem é aquele que diz, e assim acontece, quando o Senhor o não mande? Porventura da boca do Altíssimo não sai tanto o mal como o bem? (Lamentações 3:37-38).

Eu formo a luz, e crio as trevas; eu faço a paz, e crio o mal; eu, o SENHOR, faço todas estas coisas (Isaías 45:7).

Tocar-se-á a trombeta na cidade, e o povo não estremecerá? Sucederá algum mal na cidade, sem que o SENHOR o tenha feito? (Amós 3:6).

O maior ato de maldade e injustiça moral na história humana é dito ter sido ativamente executado por Deus através dos Seus agentes secundários:

Todavia, foi da vontade do SENHOR esmagá-lo, fazendo-o enfermar; quando a sua alma se puser por expiação do pecado, verá a sua posteridade, prolongará os seus dias; e a vontade do SENHOR prosperará na sua mão (Isaías 53:10)

Porque verdadeiramente contra o teu santo Filho Jesus, que tu ungiste, se ajuntaram, não só Herodes, mas Pôncio Pilatos, com os gentios e os povos de Israel; Para fazerem tudo o que a tua mão e o teu conselho tinham anteriormente determinado que se havia de fazer (Atos 4:27-28).

Em todo caso, Deus decretou a morte de Cristo por uma boa razão, a saber, a redenção dos Seus eleitos. Da mesma forma, Seu decreto para a existência do mal é para um propósito digno de Sua glória. Os eleitos e os réprobos são ambos criados para esta razão:

Direi ao norte: Dá; e ao sul: Não retenhas. Trazei meus filhos de longe e minhas filhas das extremidades da terra — a todo aquele que é chamado pelo meu nome, e que criei para minha glória, e que formei e fiz. (Isaías 43:6-7).

Nele, digo, em quem também fomos escolhidos, havendo sido predestinados, conforme o propósito daquele que faz todas as coisas, segundo o conselho da sua vontade; Com o fim de sermos para louvor da sua glória, nós os que primeiro esperamos em Cristo (Efésios 1:11-12).

E eu endurecerei o coração de Faraó, para que os persiga, e serei glorificado em Faraó e em todo o seu exército, e saberão os egípcios que eu sou o SENHOR... (Êxodo 14:4)

Porque diz a Escritura a Faraó: Para isto mesmo te levantei; para em ti mostrar o meu poder, e para que o meu nome seja anunciado em toda a terra... E que direis se Deus, querendo mostrar a sua ira, e dar a conhecer o seu poder, suportou com muita paciência os vasos da ira, preparados para a perdição; Para que também desse a conhecer as riquezas da sua glória nos vasos de misericórdia, que para glória já dantes preparou (Romanos 9:17, 22-23).

Baseados nas passagens acima, chegamos à seguinte conclusão: Deus controla tudo o que existe e tudo o que acontece. Não há nada que aconteça que Ele não tenha ativamente decretado — nem mesmo um simples pensamento na mente do homem. Visto que isto é verdadeiro, segue-se que Deus decretou a existência do mal; Ele não o permitiu meramente, como se algo pudesse se originar e acontecer aparte de Sua vontade e do Seu poder. Visto que temos mostrado que nenhuma criatura pode fazer decisões completamente independentes, o mal nunca poderia ter começado sem o decreto ativo de Deus, e não poderia continuar nem por um momento aparte da vontade de Deus. Deus decretou o mal, no final das contas, para a Sua própria glória, embora não seja necessário conhecer ou declarar esta razão para defender o Cristianismo do problema do mal.

Todavia, aqueles que vêem que é completamente impossível desassociar Deus da origem e continuação do mal, tentam distanciar Deus do mal dizendo que Deus meramente “permitiu” o mal, e que Ele não causou nada dele. Contudo, visto que a própria Escritura declara que Deus ativamente decretou tudo, e que nada pode acontecer aparte da Sua vontade e do Seu poder, não faz sentido dizer que Ele meramente permite algo — nada acontece por mera permissão de Deus.

Visto que “nele vivemos, e nos movemos, e existimos” (Atos 17:28), num nível metafísico, é absolutamente impossível fazer algo em independência de Deus. Sem Ele, uma pessoa não pode nem mesmo pensar ou se mover. Como, então, o mal pode ser tramado e cometido em total independência dEle? Como alguém pode ao menos pensar o mal, aparte da vontade e do propósito de Deus? Ao invés de tentar “proteger” Deus de algo que Ele não precisa ser protegido, deveríamos reconhecer alegremente com a Bíblia que Deus decretou ativamente o mal, e então, tratar com o assunto sobre esta base.

O censo de Israel realizado por Davi fornece um exemplo do mal decretado por Deus e realizado através dos agentes secundários:

E a ira do SENHOR se tornou a acender contra Israel; e incitou a Davi contra eles, dizendo: Vai, numera a Israel e a Judá (2 Samuel 24:1).

Então Satanás se levantou contra Israel, e incitou Davi a numerar Israel (1 Crônicas 21:1).

Os dois versos referem-se ao mesmo incidente. Não há contradição se a visão que está aqui sendo apresentada é verdadeira. Deus decretou que Davi pecaria fazendo o censo, mas Ele fez com que Satanás realizasse a tentação como um agente secundário. [3] Mais tarde, Deus puniu Davi por cometer este pecado:

E pesou o coração de Davi, depois de haver numerado o povo; e disse Davi ao SENHOR: Muito pequei no que fiz; porém agora ó SENHOR, peço-te que perdoes a iniqüidade do teu servo; porque tenho procedido mui loucamente. Levantando-se, pois, Davi pela manhã, veio a palavra do SENHOR ao profeta Gade, vidente de Davi, dizendo: Vai, e dize a Davi: Assim diz o SENHOR: Três coisas te ofereço; escolhe uma delas, para que ta faça. Foi, pois, Gade a Davi, e fez-lho saber; e disse-lhe: Queres que sete anos de fome te venham à tua terra; ou que por três meses fujas de teus inimigos, e eles te persigam; ou que por três dias haja peste na tua terra? Delibera agora, e vê que resposta hei de dar ao que me enviou. Então disse Davi a Gade: Estou em grande angústia; porém caiamos nas mãos do SENHOR, porque muitas são as suas misericórdias; mas nas mãos dos homens não caia eu (2 Samuel 24:10-14).

Embora o mal do qual estamos falando seja deveras negativo, o fim último, que é a glória de Deus, é positivo. Deus é o único que possui dignidade intrínseca, e se Ele decide que a existência do mal irá servir, no final das contas, para glorificá-lo, então, o decreto é, por definição, bom e justificável. Alguém que pensa que a glória de Deus não é digna da morte e sofrimento de bilhões de pessoas tem uma opinião muito alta de si mesmo e da humanidade. A dignidade de uma pessoa pode ser derivada somente do Seu criador ou lhe dada por Ele, e à luz do propósito para o qual o Criador lhe fez. Visto que Deus é o único padrão de medida, se Ele pensa que algo é justificável, então, este é, por definição, justificável. Os cristãos não deveriam ter problemas em afirmar tudo isto, e aqueles que acham difícil aceitar o que a Escritura explicitamente ensina, deveriam reconsiderar seu compromisso espiritual, para ver se eles estão verdadeiramente na fé.

Muitas pessoas contestarão o direito e a justiça de Deus em decretar a existência do mal para a Sua própria glória e propósito. Ao discutir a divina eleição, na qual Deus escolhe alguns para salvação e condena todos os outros, Paulo antecipa uma objeção similar, e escreve:

Dir-me-ás então: Por que se queixa ele ainda? Porquanto, quem tem resistido à sua vontade? Mas, ó homem, quem és tu, que a Deus replicas? Porventura a coisa formada dirá ao que a formou: Por que me fizeste assim? Ou não tem o oleiro poder sobre o barro, para da mesma massa fazer um vaso para honra e outro para desonra? (Romanos 9:19-21)

Efetivamente, Paulo está dizendo, “Certamente o Criador tem o direito de fazer o que Ele quiser com as Suas criaturas. E, em primeiro lugar, quem é você para fazer tal objeção?” Alguns objetam que o homem é maior do que um “pedaço de barro”; eu até mesmo já vi um escritor cristão professo fazer esta fútil objeção. Primeiro, esta é uma analogia bíblica, e um cristão verdadeiro não irá contestá-la. Mas se alguém contestá-la, então, o debate se torna um sobre a infabilidade bíblica, que deve ser resolvido primeiro, antes de se retornar a esta analogia. Visto que eu tenho estabelecido a infabilidade bíblica em outro lugar, a negação da infabilidade bíblica não é uma opção aqui. Segundo, se um homem é mais do que um pedaço de barro, então, Deus também é algo mais do que um oleiro — Ele é infinitamente maior do que um oleiro. A analogia é apropriada quando entendemo-la dizer o que ela significa, isto é, Deus como Criador tem o direito de fazer o que Ele quiser com as Suas criaturas. “Portanto, Deus tem misericórdia de quem quer, e a quem quer endurece” (Romanos 9:18).

Para uma pessoa ter dificuldade em aceitar que Deus decretou a existência do mal implica que ele encontra algo “errado” em Deus fazer tal decreto. Contudo, qual é o padrão de certo e errado pelo qual esta pessoa julga as ações de Deus? Se há um padrão moral superior a Deus, ao qual o próprio Deus é responsável, e pelo qual o próprio Deus é julgado, então, este “Deus” não é Deus de forma alguma; antes, este padrão maior seria Deus. Contudo, o conceito cristão de Deus refere-se ao mais alto ser e padrão, assim, não há, por definição, nenhum mais alto. Em outras palavras, se há algo mais alto do que o “Deus” que uma pessoa está argumentando contra, então, esta pessoa não está realmente se referindo ao Deus cristão. Visto que este é o caso, não há padrão mais alto do que Deus, ao qual o próprio Deus seja responsável e pelo qual o próprio Deus seja julgado. Portanto, é logicamente impossível acusar Deus de fazer algo moralmente errado.

Jesus diz que somente Deus é bom (Lucas 18:19), de forma que toda “bondade” em outras coisas pode ser somente derivada. A natureza de Deus define a própria bondade, e visto que nEle “não há mudança nem sombra de variação” (Tiago 1:17), Ele é o único e constante padrão de bondade. Não importa quão moral eu seja, ninguém pode me considerar o padrão objetivo de bondade, visto que a palavra “moral” não tem sentido, a menos que seja usada com relação ao caráter de Deus. Isto é, quão “moral” uma pessoa é refere-se ao grau de conformidade de seu caráter com o caráter de Deus. Ao grau em que uma pessoa pensa e age de acordo com natureza e os mandamentos de Deus, ele é moral. Diferentemente, não há diferença moral entre altruísmo e egoísmo; virtude e vício são conceitos sem significados; estrupo e assassinato não são crimes, mas eventos amorais.

Contudo, visto que Deus chama a Si mesmo de bom, e visto que Deus definiu a bondade para nós revelando Sua natureza e bondade, o mal é, dessa forma, definido como algo que é contrário à Sua natureza e aos Seus mandamentos. Visto que Deus é bom, e visto que Ele é a única definição de bondade, é bom também que Ele tenha decretado a existência do mal. Não há padrão de bom e mal pelo qual possamos denunciar Seu decreto como errado ou mal. Não estamos afirmando que o mal é bom — o que seria uma contradição — mas, estamos dizendo que o decreto de Deus para a existência do mal é bom.

Hebreus 6:13 diz, “Quando Deus fez a promessa a Abraão, como não tinha outro maior por quem jurasse, jurou por si mesmo”. Em outras palavras, não há ninguém a quem Deus precise prestar contas, e não há corte a qual alguém possa arrastá-lo para lançar acusações contra Ele. Ninguém julga Deus; antes, toda pessoa é julgada por Ele. Outras passagens bíblicas relevantes incluem as seguintes:

Se quiser contender com ele, nem a uma de mil coisas lhe poderá responder. Ele é sábio de coração, e forte em poder; quem se endureceu contra ele, e teve paz? Ele é o que remove os montes, sem que o saibam, e o que os transtorna no seu furor. O que sacode a terra do seu lugar, e as suas colunas estremecem. O que fala ao sol, e ele não nasce, e sela as estrelas. O que sozinho estende os céus, e anda sobre os altos do mar. O que fez a Ursa, o Órion, e o Sete-estrelo, e as recâmaras do sul. O que faz coisas grandes e inescrutáveis; e maravilhas sem número. Eis que ele passa por diante de mim, e não o vejo; e torna a passar perante mim, e não o sinto. Eis que arrebata a presa; quem lha fará restituir? Quem lhe dirá: Que é o que fazes? (Jó 9:3-12).

Porventura o contender contra o Todo-Poderoso é sabedoria? Quem argüi assim a Deus, responda por isso. Então Jó respondeu ao SENHOR, dizendo: Eis que sou vil; que te responderia eu? A minha mão ponho à boca. Uma vez tenho falado, e não replicarei; ou ainda duas vezes, porém não prosseguirei. Então o SENHOR respondeu a Jó de um redemoinho, dizendo: Cinge agora os teus lombos como homem; eu te perguntarei, e tu me explicarás. Cinge agora os teus lombos como homem; eu te perguntarei, e tu me explicarás (Jó 40:2-8).

Ai daquele que contende com o seu Criador! o caco entre outros cacos de barro! Porventura dirá o barro ao que o formou: Que fazes? ou a tua obra: Não tens mãos? Ai daquele que diz ao pai: Que é o que geras? E à mulher: Que dás tu à luz? Assim diz o SENHOR, o Santo de Israel, aquele que o formou: Perguntai-me as coisas futuras; demandai-me acerca de meus filhos, e acerca da obra das minhas mãos (Isaías 45:9-11).

Ó profundidade das riquezas, tanto da sabedoria, como da ciência de Deus! Quão insondáveis são os seus juízos, e quão inescrutáveis os seus caminhos! Porque, quem compreendeu a mente do Senhor? ou quem foi seu conselheiro? Ou quem lhe deu primeiro a ele, para que lhe seja recompensado? Porque dele e por ele, e para ele, são todas as coisas; glória, pois, a ele eternamente. Amém (Romanos 11:33-36).

Visto que derivamos nosso próprio conceito e definição de bondade à partir de Deus, acusá-lo de maldade seria como dizer que o bom é mal, o que é uma contradição.


A SOLUÇÃO

Tendo demolido a popular, porém irracional e anti-bíblica, defesa do livre-arbítrio, examinaremos agora a resposta bíblica ao problema do mal. Repitamos primeiro o argumento dos incrédulos:

1. O Deus cristão é todo-poderoso e todo-amoroso.
2. Se Ele é todo-poderoso, então Ele é capaz de acabar com todo mal.
3. Se Ele é todo-amoroso, então Ele deseja acabar com todo mal.
4. Mas o mal ainda existe.
5. Portanto, o Deus cristão não existe. [4]

O argumento encontra um obstáculo insuperável quando chegamos na premissa (3), a saber, o não-cristão não pode encontrar uma definição de amor que sustente esta premissa sem destruir o argumento. Isto é, por qual definição de amor sabemos que um Deus todo-amoroso desejaria destruir o mal? Ou, por qual definição de amor sabemos que um Deus todo-amoroso já teria destruído o mal?

Se esta definição de amor vem de fora da Bíblia, então, por que a cosmovisão bíblica tem que respondê-la? Formar um argumento usando uma definição não-bíblica de amor seria fazer o argumento irrelevante como um desafio ao Cristianismo. Por outro lado, se tomamos a definição de amor da Bíblia, então, aquele que usa este argumento deve mostrar que a própria Bíblia define amor de uma forma que requer um Deus todo-amoroso destruir o mal, ou já ter destruído o mal. A menos que o não-cristão possa defender com sucesso a premissa (3), o argumento do problema do mal falha antes mesmo de terminarmos de lê-lo.

Agora, se o não-cristão usa uma definição não-bíblica de amor na premissa (1) , então, o argumento é uma falácia enganadora desde o início. Mas se o não-cristão usa a definição bíblica de amor na premissa (1), e então substitui por uma definição não-bíblica de amor na premissa (3), então, ele comete a falácia do equívoco. Se é assim, então o máximo que seu argumento pode fazer é apontar que ele tem uma definição não-bíblica de amor, mas seria completamente irrelevante como um desafio ao Cristianismo.

Por outro lado, se ele tenta usar a definição bíblica de amor, então, para seu argumento ser relevante, a própria Escritura teria que definir amor de uma maneira que requeira Deus destruir o mal, ou já ter destruído o mal. Contudo, embora a Escritura ensine que Deus é amoroso, ela também ensina que existe mal no mundo, e que este mal está, no final das contas, debaixo do controle completo e soberano de Deus. Portanto, a própria Escritura nega que haja qualquer relação entre o amor de Deus e a existência do mal.

Para o argumento do problema do mal permanecer, o não-cristão deve estabelecer a premissa, “O amor de Deus contradiz a existência do mal”, ou algo com este efeito. Mas a própria Escritura não afirma esta premissa, e se o não-cristão tentar argumentar esta premissa com definições de amor e mal encontradas em sua própria cosmovisão não-bíblica, então, tudo que ele consegue é mostrar que a cosmovisão bíblica é diferente da cosmovisão não-bíblica. Nós já sabemos isto, mas, o que acontece com o problema do mal? O não-cristão aponta para o ensino escriturístico sobre o amor de Deus, então, contrabandeia uma definição não-bíblica de amor que requer que Deus destrua o mal, e depois disto, estupidamente se vanglória da “contradição” que ele produziu.

Se uma pessoa quer desafiar a Bíblia ou sustentar a Bíblia por causa do que ela diz, então ela deve primeiro definir os próprios termos dela; de outra forma, ele pode somente desafiar o que a Bíblia não diz, o que faz a objeção irrelevante. O não-cristão deve demonstrar porque o amor de Deus necessariamente implica que Ele deve ou que Ele deseje destruir o mal, ou que ele necessariamente implica que Ele deveria ou que Ele desejaria ter já destruído o mal.

Responder algo como, “Porque um Deus amoroso desejaria aliviar o sofrimento”, não ajudaria em nada, visto que esta resposta apenas declara novamente a premissa em diferentes palavras, de forma que a mesma pergunta permanece. Por que um Deus amoroso deseja aliviar o sofrimento? Em primeiro lugar, como alguém define o sofrimento? Se o não-cristão não pode definir amor ou sofrimento, ou se ele não pode logicamente impor suas definições sobre o cristão, então sua premissa equivale a dizer que um Deus com um atributo indefinido X deve desejar destruir ou ter destruído um Y indefinido. Mas se ele não pode definir nem X e nem Y, então, ele não tem premissa inteligível sobre a qual construir um argumento inteligível contra o Cristianismo.

Outro tipo de resposta pode dizer, “Porque Deus queria triunfar sobre o mal”. Novamente, qual é a definição de “triunfar”? Se o próprio Deus é a causa última do mal, e se Deus exerce total e constante controle sobre ele, então, em que sentido Ele estaria “perdendo” do mal? Assim, seja o que for que um não-cristão diga, ele encontra o mesmo problema, e é impossível para ele estabelecer que o amor de Deus contradiz a existência do mal.

Antes, visto que a Bíblia ensina tanto sobre o amor de Deus como sobre a realidade do sofrimento, é legítimo concluir que, da perspectiva bíblica, o amor de Deus não implica necessariamente que Ele deva destruir o mal, ou que Ele deveria já o ter destruído. Certamente, isto não pode ser assim à partir de uma perspectiva não-bíblica, mas novamente, isto somente mostra que a cosmovisão bíblica diverge das cosmovisões não-bíblicas, o que já sabemos, e que é a razão do debate. Mas o não-cristão ainda não nos deu uma objeção real e inteligível.

Enquanto o não-cristão falhar em estabelecer a premissa (3), que o amor de Deus contradiz a existência do mal, o cristão não está sob a obrigação de tomar seriamente o problema do mal como um argumento contra o Cristianismo. De fato, visto que o não-cristão falha em definir alguns dos termos-chave, ninguém pode logicamente sequer entender o argumento — não há argumento, e não há real objeção à resposta.

Se pararmos aqui, já teremos refutado o assim chamado problema do mal, tendo mostrado que não há tal problema de maneira alguma. Contudo, apenas para a discussão continuar, aceitaremos a premissa por ora; isto é, por causa do argumento, assumiremos que o amor de Deus, de alguma forma, contradiz a existência do mal, enquanto guardamos em mente que isto é algo que a Escritura nunca ensina, e que os não-cristãos nunca estabeleceram.

Agora, os não-cristãos argumentam que, dado a existência existência do mal, o Deus cristão não pode logicamente existir. Em resposta, já mostramos que o não-cristão não pode estabelecer a premissa de que um Deus todo-amoroso deve necessariamente destruir ou desejar destruir o mal. Tendo dito isto, procedemos agora para apontar que as premissas do argumento não levam necessariamente à conclusão do não-cristão em primeiro lugar; antes, muitas conclusões diferentes são possíveis:

1. O Deus cristão é todo-poderoso e todo-amoroso.
2. Se Ele é todo-poderoso, então Ele é capaz de acabar com todo mal.
3. Se Ele é todo-amoroso, então Ele deseja acabar com todo mal.
4. Mas o mal ainda existe.
5. Portanto, Deus tem um bom propósito para o mal.

1. O Deus cristão é todo-poderoso e todo-amoroso.
2. Se Ele é todo-poderoso, então Ele é capaz de acabar com todo mal.
3. Se Ele é todo-amoroso, então Ele deseja acabar com todo mal.
4. Mas o mal ainda existe.
5. Portanto, Deus eventualmente destruirá o mal.

Sem declarar imediatamente se pensamos que os argumentos acima são validos ou inválidos, o ponto é que num argumento válido, as premissas devem necessária e inevitavelmente conduzir à conclusão. Contudo, no argumento do problema do mal, as premissas, de forma alguma, conduz necessária e inevitavelmente à conclusão. Portanto, o argumento do problema do mal é inválido.

Ao invés de usar a realidade do mal para negar a existência de Deus, as duas versões revisadas acima chegam a duas conclusões diferentes. Novamente, eu não disse se estas duas versões revisadas são bons argumentos, e não disse que as premissas necessária e inevitavelmente levam a estas duas conclusões; antes, tudo que estou tentando mostrar é que as premissas não levam necessária e inevitavelmente à conclusão do não-cristão, e isto é suficiente para mostrar que seu argumento é inválido.

Alguns não-cristãos dizem que se os cristãos reivindicam que Deus tem um bom propósito para o mal, então os cristãos devem também declarar e defender este propósito. Contudo, os não-cristãos nunca foram capazes de mostrar o porque os cristãos devem declarar e defender este propósito. O debate é sobre se as premissas dadas levam, necessária e inevitavelmente, à conclusão do não-cristão. Se há ou não um bom propósito para o mal, e se os cristãos podem ou não declarar e defender este propósito, é completamente irrelevante. A Escritura deveras explica pelo menos uma parte do propósito de Deus para o mal, mas novamente, ele não é logicamente necessário ou relevante para o debate.

Há mais. Agora, o não-cristão argumenta que Deus não existe porque o mal existe, e através desde ponto já refutamos o argumento. Contudo, podemos adicionar que a existência do Deu cristão é, de fato, o pré-requisito lógico para a existência do mal. Isto é, o mal não tem sentido e é indefinido sem um padrão objetivo e absoluto de certo e errado, de bom e mal, e este padrão pode ser somente o Deus cristão.

Quando o não-cristão afirma que o mal existe, o que ele quer dizer por “mal”? Ele pode estar se referindo a avareza, ódio, assassinato, estrupo, terremoto, enchentes e coisas semelhantes. Contudo, sobre que base e por qual padrão ele pode chamar estas coisas de males? Ele chama estas coisas de males simplesmente porque ele as desaprova? Qualquer definição ou padrão de mal que ele dê sem apelar ao Deus cristão e a Escritura cristã não serão bem-sucedidos e será facilmente desmoronado.

Por exemplo, se o não-cristão reivindica que o assassinato é errado porque ele viola o direito à vida da vítima, precisamos somente perguntar porque a vítima tem algum direito à vida. Quem lhe deu este assim chamado direito? O não-cristão? Quem disse que há algo como um direito, em primeiro lugar? Os não-cristãos tentam muitos argumentos, mas todos eles têm sido expostos como tolos e injustificáveis. [5]

Por outro lado, o cristão afirma que o assassinato é errado, imoral e mal, porque Deus proíbe o assassinato: “Quem derramar o sangue do homem, pelo homem o seu sangue será derramado; porque Deus fez o homem conforme a sua imagem” (Gênesis 9:6); Deus explicitamente o desaprova quando Ele diz, “Não matarás” (Êxodo 20:13). É consistente com a cosmovisão cristã dizer que o assassinato é mal e que o assassino deve ser responsabilizado pelo acontecido, mas o não-cristão nunca pode justificar a mesma reivindicação. Ele não pode nem mesmo definir autoritariamente o assassinato. [6]

O não-cristão reivindica que o mal existe, e à partir desta base avalia o que o Cristianismo diz sobre Deus. Ele usa algo que ele reivindica ser óbvio para refutar algo que ele reivindica não ser óbvio. Contudo, a existência do mal não é óbvia, de forma alguma, a menos que haja um padrão moral absoluto, objetivo e universal, e que conheçamos de certo modo este padrão, de forma que possamos fazer avaliações com ele. Visto que o não-cristão falha em estabelecer tal padrão, e visto que ele falha em estabelecer como conheceremos tal padrão, suas referências ao mal são sem sentido e ininteligíveis, e seus argumentos à partir do problema do mal não têm efeito contra o Cristianismo. De fato, sobre a base de sua cosmovisão, ele nem sequer sabe o que seus próprios argumentos significam.

Se uma pessoa nega a existência de Deus, ele não tem base racional para afirmar a existência do mal; por necessidade lógica, nosso reconhecimento de Deus precede nosso reconhecimento do mal. A menos que o Deus cristão seja pressuposto de antemão, o mal continua indefinido. Quando o não-cristão argumenta contra o Cristianismo usando o problema do mal, ele se torna um terrorista intelectual, de forma que ele seqüestra o absoluto moral do Cristianismo no processo de argumentar contra o Cristianismo. Contudo, ele não pode se referir a qualquer mal natural ou moral sem implicitamente reconhecer um padrão pelo qual julga algo como mal. Se ele reconhece a existência do mal, então, ele deve primeiro reconhecer a existência de Deus, mas se ele já reconhece a existência de Deus, então, o argumento à partir do problema do mal não tem sentido.

Certamente, o não-cristão não pode se render imediatamente a este ponto; antes, ele provavelmente tentará oferecer alguma definição viável do mal para recuperar seu argumento. Eu não posso providenciar as definições possíveis que ele pode tentar propor, mas eu providenciei informação suficiente aqui, de forma que qualquer pessoa pode refutar qualquer definição não-cristã proposta. Se o cristão consistentemente demandar justificação para toda reivindicação e definição não-cristã, ele sempre frustará de forma sucedida qualquer tentativa de construir um argumento contra o Cristianismo à partir da existência do mal. [7]

Alguns não-cristãos têm chegado a perceber que o argumento à partir do problema do mal não é estritamente válido, de forma que, embora eles continuem desafiando o Cristianismo baseados na existência do mal, eles têm “suavizado” sua reivindicação. Isto é, eles dizem que, embora a existência do mal não contradiga logicamente a existência de Deus, a existência do mal pelo menos provê uma forte evidência contra a existência de Deus, ou a probabilidade da existência de Deus. Assim, ao invés de chamar sua reivindicação de um caso lógico contra a existência de Deus, eles chamam-no de um caso evidencial contra a existência de Deus.[8]

Mas isto não tem sentido — é apenas um modo enganador de dizer que eles não tem nenhum argumento. De fato, todos os problemas que eu apontei com o caso “lógico” permanecem no caso “evidencial”. O argumento ainda falha em estabelecer que o amor de Deus contradiz a existência do mal, ou que o amor de Deus requer que Ele destrua o mal, ou já ter destruído o mal. Ele ainda falha em definir os termos cruciais. O que é amor? O que é mal? De fato, o argumento levanta questões piores ao adicionar o conceito de “evidência” ao debate, visto que agora eu demando diversas coisas adicionais: uma definição de evidência, um padrão para determinar o que constitui evidência em favor ou contra algo, um padrão para determinar a relevância e a força de qualquer evidência alegada, e uma epistemologia para descobrir as coisas que são usadas como evidência.

Junto com o caso “evidencial”, algumas pessoas incluem a reivindicação de que há muito mal “gratuito”, e que isto é evidência contra a existência de Deus. Mas novamente, o que é evidência? E quem decide o que é “gratuito”? [9] Por qual padrão de necessidade decidimos que um evento mal é desnecessário? E desnecessário para o que? E porque ele deve ser necessário em primeiro lugar? Na cosmovisão bíblica, quando Deus faz algo, isto é justificado, por definição, simplesmente porque Ele decidiu assim fazer. Assim, o não-cristão não pode argumentar contra Cristianismo apelando aos eventos “injustificáveis”, visto que ele deve primeiro refutar o Cristianismo antes que ele possa mostrar que estes eventos são injustificáveis.


OUTRAS COSMOVISÕES

Não há razão para longas explanações ou repetições inúteis, visto que o assunto é deveras tão simples como parece ser. O argumento à partir do problema do mal, em algumas formas, é um dos argumentos mais irracionais já inventados, mas ele tem enganado e perturbado muitas pessoas por causa de seu apelo emocional. Em resposta, o cristão deve não somente neutralizar o argumento, mas ele deve tomar a posição ofensiva sobre este tópico contra o não-cristão.

Talvez porque o problema do mal seja mais freqüentemente usado para desafiar o Cristianismo, muitas pessoas esquecem de considerar se as cosmovisões e religiões não-cristãs têm, adequada e coerentemente, respondido à existência de mal. Os não-cristãos fornecem uma definição autoritativa do mal? Sua definição de mal contradiz o que eles reivindicam sobre a física (mal natural) e a psicologia (mal moral)? Eles podem explicar como e porque o mal começa e continua? Eles podem sugerir uma solução para o mal, e podem garantir que esta solução será bem sucedida? Nenhuma cosmovisão, exceto a fé cristã, pode sequer começar a responder estas questões.

Da próxima vez que um não-cristão desafiá-lo com o problema do mal, ao invés de ser pressionado no canto, você deve ser capaz de dar uma resposta irrefutável, e então tomar a ofensiva e virar o argumento contra o não-cristão (2 Coríntios 10:5):

“Eu sou capaz de mostrar que a existência do mal não contradiz o amor de Deus ou a existência de Deus. De fato, o próprio conceito de mal pressupõe a existência do Deus cristão. Este Deus decretou a existência do mal para Sua própria glória, e cada aspecto e ocorrência do mal está debaixo do Seu preciso controle, não há padrão mais alto do que Deus para julgar este decreto como errado. Um dia Ele banirá todos pecadores para os tormentos sem fim no inferno, de forma que cada ocorrência de assassinato, roubo, estrupo e até mesmo cada palavra que um homem tenha proferido, será julgada. Ele então punirá justamente todos pecadores que não creram em Cristo para salvação, mas Seus escolhidos certamente serão salvos.

Mas, como você trata com o mal? Dada sua cosmovisão, como você pode sequer ter um conceito significante e universal do mal? Como você explica sua origem e continuação? Você pode oferecer uma solução eficaz ou até mesmo segura para desmoronar o mal? Você pode apresentar as razões universalmente aplicáveis e obrigatórias contra tais coisas como genocídio e racismo? Como sua cosmovisão faz demandas morais sobre alguém que não a subscreve? Dada sua cosmovisão, há justiça final e perfeita para alguém? Se não, qual é sua solução ou explanação para isso? Como você pode definir justiça em primeiro lugar? Porque uma pessoa de outra nação ou cultura deve reconhecer seus assim chamados direitos?

Se você não pode dar respostas adequadas a estas e milhares de outras perguntas sobre a base de sua cosmovisão e comprometimentos intelectuais sem auto-contradição, então, é evidente que a existência do mal significa a destruição de sua cosmovisão, enquanto que ela não coloca nenhuma ameaça contra a minha, de forma alguma. Você é um hipócrita se sequer mencionar o problema do mal como uma objeção ao Cristianismo”.


Embora muitas pessoas gostem de desafiar os cristãos com o problema do mal, a verdade é que o Cristianismo é a única cosmovisão na qual a existência do mal não cria um problema lógico. Todavia, muitos cristãos professos são intimidados pelos argumentos não-cristãos. Isto é parcialmente porque eles não aprenderam as refutações lógicas a estes argumentos, mas também porque eles algumas vezes concordam com os não-cristãos, pelo menos no nível emocional. Mas certamente, apenas porque algo causa um distúrbio emocional em algumas pessoas, não significa que cause algum desafio à própria fé cristã.

Agora, se o não-cristão é tão perturbado sobre a existência do mal, ele pode sempre perguntar a um cristão sobre como depender de Cristo para salvação; de outra forma, ele pode se submeter a um departamento de psiquiatria, onde ele pode continuar miserável sob o cuidado profissional. Quanto aos cristãos, a Escritura fornece a solução: “Tu conservarás em paz aquele cuja mente está firme em ti; porque ele confia em ti” (Isaías 26:3). Salmos 73:16-17 diz, “Quando pensava em entender isto, foi para mim muito doloroso; até que entrei no santuário de Deus; então entendi eu o fim deles”. Somente aceitando a cosmovisão cristã uma pessoa pode chegar a uma posição racional sobre a existência do mal, e somente entrando no “santuário de Deus” o assunto pode parar de ser “opressivo”. Somente aqueles que são trazidos para perto de Deus podem entender suficientemente a realidade do mal e reter a estabilidade emocional. A fé cristã é verdadeira e é o único caminho para Deus e a salvação. Ela é imune aos ataques intelectuais. Ela não pode ser desafiada com sucesso, mas somente estudada e obedecida.


NOTAS:

1 - Às vezes o argumento inclui o fato de que os cristãos afirmam que Deus é também onisciente (conhece tudo) — se Deus conhece tudo, então, Ele sabe como destruir o mal.

2 - A doutrina do “livre-arbítrio” é anti-bíblica e herética, e alguns têm seguido a doutrina até o seu próximo passo lógico, ao dizer que se o homem é verdadeiramente livre, então Deus não pode realmente saber com certeza o que o homem fará, negando dessa forma a onisciência de Deus. Contudo, ainda assim, Deus saberia que é possível para o livre-arbítrio produzir males extremos e horrendos, de forma que o mesmo problema permanece.

3 - O próprio Satanás é uma criatura, e, portanto, não tem livre-arbítrio. Todas suas ações e decisões são controladas por Deus.

4 - Certamente, pessoas diferentes podem apresentar formulações diferentes do problema do mal, mas minha refutação se aplicará a todas elas.

5 - Para mais informações, vejam meus escritos sobre apologéticas e éticas.

6 - Por exemplo, o não-cristão nunca justifica, ao definir o assassinato, a inclusão da matança de humanos mas a exclusão da matança de bactérias. Certamente, alguns advogados dos direitos dos animais consideram assassinato o massacrar animais, mas não bactérias; contudo, eles nunca justificam a inclusão dos animais ou a exclusão das bactérias.

7 - O argumento se tornará, no final das contas, um amplo debate pressuposicional. Para mais informação sobre isto, veja meu livro Presuppositional Confrontations.

8 - Algumas pessoas usam diferentes termos para fazer esta mesma distinção.

9 - Sobre este ponto, até mesmo alguns filósofos profissionais inclinam-se a um apelo à opinião popular. Isto é, eles reivindicam que “todo mundo” sabe que certas coisas são más, e que certas coisas são males gratuitos. Em outro contexto, estes mesmos filósofos criticariam tal apelo à opinião popular para estabelecer uma premissa essencial — que eles se utilizam desta tática aqui, me mostra que eles são estúpidos e desesperados. A resposta mais óbvia é que é falacioso pensar que algo é verdadeiro apenas porque muitos ou mesmo a maioria das pessoas pensam que seja verdadeiro.

Alguns filósofos argumentam que se a maioria das pessoas pensa que há males gratuitos, então, o peso da prova cai sobre o cristão, para o mesmo mostrar que não há males gratuitos. Embora eu discorde que o peso da prova caia sobre mim simplesmente porque eu nego a opinião popular, mesmo se caísse, eu tenho mostrado que qualquer mal que Deus decrete é justificável por definição, de forma que o peso da prova retorna ao não-cristão, que deve refutar este ponto particular ou refutar o Cristianismo como um todo, e então o foco do debate de torna um pressuposicional (veja meu livro Presuppositional Confrontations).

Além do mais, mesmo que o apelo à opinião popular fosse legítimo (embora eu negue isto), eu demando provas de que realmente a opinião popular seja a de que existem males gratuitos. Como o não-cristão pode estabelecer esta reivindicação? Mesmo se ele pudesse realizar uma pesquisa empírica global, eu já refutei o empirismo em outro lugar. Se ele não pode fazer isto, então ele deve mostrar também que, desde a origem da humanidade, tem sido a opinião popular que há males gratuitos. Ele deve provar também que esta continuará a ser a opinião popular em todas as gerações futuras. Se ele falha em fazer isto, então, eu não tenho razão para aceitar sua reivindicação de que “todo mundo sabe” que existe o mal ou o mal gratuito. Ele pensa que “todo mundo sabe”, mas ele não sabe que “todo mundo sabe”; esta é sua opinião pessoal sobre a opinião popular.

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Nota sobre o autor: Vincent Cheung é o presidente da Reformation Ministries International [Ministério Reformado Internacional]. Ele é o autor de mais de vinte livros e centenas de palestras sobre uma vasta gama de tópicos na teologia, filosofia, apologética e espiritualidade. Através dos seus livros e palestras, ele está treinando cristãos para entender, proclamar, defender e praticar a cosmovisão bíblica como um sistema de pensamento compreensivo e coerente, revelado por Deus na Escritura. Ele e sua esposa, Denise, residem em Boston, Massachusetts.
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Tradução: Felipe Sabino de Araújo Neto
Cuiabá-MT, 19 de Fevereiro de 2005.

Artigo extraído do site: www.monergismo.com

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